sexta-feira, 28 de maio de 2010

Os interesses do Império e os nossos

Excelente e esclarecedor editorial de Carta Capital nº 597,  escrito pelo sempre brilhante Mino Carta, mostrando como a mídia nativa segue na linha do atacar o Lula e sua política externa para defender os interesses do imperialismo estadunidense e a subserviência eterna do Brasil aos caprichos estrangeiros e à ordem internacional. Vale a leitura.

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Os interesses do Império e os nossos

Ao ler os jornalões na manhã de segunda 17/5, dos editoriais aos textos ditos jornalísticos, sem omitir as colunas, sobretudo as de O Globo, me atrevi a perguntar aos meus perplexos botões se Lula não seria um agente, ocidental e duplo, a serviço do Irã. Limitaram-se a responder soturnamente com uma frase de Raymundo Faoro: “A elite brasileira é entreguista”.

Entendi a mensagem. A elite brasileira aceita com impávida resignação o papel reservado ao País há quase um século, de súdito do Império. Antes, foi de outros. Súdito por séculos, embora graúdo por causa de suas dimensões e infindas potencialidades, destacado dentro do quintal latino-americano. Mas subordinado, sempre e sempre, às vontades do mais forte.

Para citar eventos recentíssimos, me vem à mente a foto de Fernando Henrique Cardoso, postado dois degraus abaixo de Bill Clinton, que lhe apoia as mãos enormes sobre os ombros, em sinal de tolerante proteção e imponência inescapável. O americano sorri, condescendente. O brasileiro gargalha. O presidente que atrelou o Brasil ao mando neoliberal e o quebrou três vezes revela um misto de lisonja e encantamento servil. A alegria de ser notado. Admitido no clube dos senhores, por um escasso instante.

Não pretendo aqui celebrar o êxito da missão de Lula e Erdogan. Sei apenas que em país nenhum do mundo democrático um presidente disposto a buscar o caminho da paz não contaria, ao menos, com o respeito da mídia. Aqui não. Em perfeita sintonia, o jornalismo pátrio enxerga no presidente da República, um ex-metalúrgico que ousou demais, o surfista do exibicionismo, o devoto da autopromoção a beirar o ridículo. Falamos, porém, é do chefe do Estado e do governo do Brasil. Do nosso país. E a esperança da mídia é que se enrede em equívocos e desatinos.

Não há entidade, instituição, setor, capaz de representar de forma mais eficaz a elite brasileira do que a nossa mídia. Desta nata, creme do creme, ela é, de resto, o rosto explícito. E a elite brasileira fica a cada dia mais anacrônica, como a Igreja do papa Ratzinger. Recusa-se a entender que o tempo passa, ou melhor, galopa. Tudo muda, ainda que nem sempre a galope. No entanto, o partido da mídia nativa insiste nos vezos de antanho, e se arma, compacto, diante daquilo que considera risco comum. Agora, contra a continuidade de Lula por meio de Dilma.

Imaginemos o que teriam estampado os jornalões se na manhã da segunda 17, em lugar de Lula, o presidente FHC tivesse passado por Teerã? Ele, ou, se quiserem, uma neoudenista qualquer? Verifiquem os leitores as reações midiáticas à fala de Marta Suplicy a respeito de Fernando Gabeira, um dos sequestradores do embaixador dos Estados Unidos em 1969. Disse a ex-prefeita de São Paulo: por que só falam da “ex-guerrilheira” Dilma, e não dele, o sequestrador?

A pergunta é cabível, conquanto Gabeira tenha se bandeado para o outro lado enquanto Dilma está longe de se envergonhar do seu passado de resistência à ditadura, disposta a aderir a uma luta armada da qual, de fato, nunca participou ao vivo. Nada disso impede que a chamem de guerrilheira, quando não terrorista. Quanto a Gabeira, Marta não teria lhe atribuído o papel exato que de fato desempenhou, mas no sequestro esteve tão envolvido a ponto de alugar o apartamento onde o sequestrado ficaria aprisionado. E com os demais implicados foi desterrado pela ditadura.

Por que não catalogá-lo, como se faz com Dilma? Ocorre que o candidato ao governo do Rio de Janeiro perpetrou outra adesão. Ficou na oposição a Lula, primeiro alvo antes de sua candidata. Cabe outro pensamento: em qual país do mundo democrático a mídia se afinaria em torno de uma posição única ao atirar contra um único alvo? Só no Brasil, onde os profissionais do jornalismo chamam os patrões de colegas.

Até que ponto o fenômeno atual repete outros tantos do passado, ou, quem sabe, acrescenta uma pedra à construção do monumento? A verificar, no decorrer do período. Vale, contudo, anotar o comportamento dos jornalões em relação às pesquisas eleitorais. Os números do Vox Populi e da Sensus, a exibirem, na melhor das hipóteses para os neoudenistas, um empate técnico entre candidatos, somem das manchetes para ganhar algum modesto recanto das páginas internas.

Recôndito espaço. Ao mesmo tempo Lula, pela enésima vez, é condenado sem apelação ao praticar uma política exterior independente em relação aos interesses do Império. Recomenda-se cuidado: a apelação vitoriosa ameaça vir das urnas.

Texto de Mino Carta, publicado na CartaCapital, ediação de 26 de maio de 2010

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Ratos de rádio versus liberdade de opinião

É cada vez mais difícil tecer uma opinião contrária ao establishment que ora vinga nestas terras de Serigy. Parece que chegamos a um momento da vida social sergipana que qualquer crítica feita a Marcelo Déda ou ao seu governo, o autor da crítica é logo tachado de “oposicionista”, “revanchista”, “sabotador”, “cego”, “jurássico”, “demista”, “joãoalvista”, e de tudo que é adjetivo negativo ou pejorativo similar a estes.

É extremamente irritante, por exemplo, ouvir os programas ditos jornalísticos nas manhãs de segunda a sexta-feira. É preciso ter sangue de barata para aguentar as intervenções de muitos ouvintes, metralhando qualquer um que ouse tecer comentários negativos ao atual governo. Sendo esses comentários direcionados a Déda, aí é que a coisa fica feia. É uma chuva de impropérios e provocações, principalmente quando o autor da crítica é do movimento sindical. Para estes, é inadmissível qualquer análise mais crítica a respeito do governo e do governador. É o dedismo dominando a vida sergipana sem igual paralelo.

Mas fica muito claro, depois de uma saraivada de audições radiofônicas matutinas, que a maioria das intervenções desses ouvintes “indignados” nos programas de rádios locais – já famosos por se tornarem verdadeiros ringues em períodos pré-eleitorais –, são dos chamados ratos de rádio (gente paga para estar defendendo interesses de grupos políticos).

Ouve-se, claramente, o discurso “ajeitado”, a fim de atender a um padrão de resposta preestabelecido, formatado para que não dê chances de que o importuno que ousou invadir as ondas do rádio pra colocar Déda de saia justa deixe a entrevista sem carregar consigo a pecha do sujeito do contra e que quer desestabilizar o seu governo.

Se são jornalistas os que pensam contrário, saem com tarja de “vendidos”; se são sindicalistas, acabam rotulados como “jurássicos”, “anacrônicos” e outras pérolas do gênero. Quando não, sindicalistas, os mesmos que lutaram por décadas, contra a Ditadura, as oligarquias e a direita patrimonialista e conservadora para ver um governo progressista na condução deste Estado, mal pode usar a imprensa – quando esta se interessa de ouvi-los – para se expressar, porque logo vêm as pedras, atiradas por aqueles que outrora estiveram do outro lado da trincheira, ou por seus paus-mandados – as tais ratazanas de rádio, que se reproduzem como uma praga.

É impressionante e, de certa forma, preocupante, esses ataques desmesurados aos que tem coragem de ter pensamento ou posição divergente, de remar contra a maré, porque o que estamos vivenciando é a tentativa de construção de um pensamento único, onde posições contraditórias não são respeitadas, tampouco admitidas. Essa ideia é de causar calafrios.

Quando não nos permitimos sequer ouvir e respeitar a opinião ou posição alheia, mesmo que ela não nos seja favorável, estamos construindo uma relação de via única, onde só um lado impõe a sua verdade. Isso não cabe numa democracia, mas em regimes totalitários, dos quais tivemos experiências e guardamos amargas lembranças.

Assim como não cabe o uso de gente que não tem o menor escrúpulo, a ponto de receber dinheiro (e põe dinheiro nisso... fala-se em até R$ 4 mil, conforme esquemas já denunciados em blogs locais) para se prestar ao papel de ventríloquos político-partidários para atacar, de forma muitas vezes rasteira e, os que divergem da condução do governo ou das posições do chefe do executivo estadual.

Saber ouvir é uma arte, como também uma posição filosófica das mais nobres. Não pode querer falar aquele que não sabe ouvir. Saber ouvir posições contrárias é, antes de tudo, um exercício fundamental para o bom desenvolvimento da sociedade. Nenhum povo do mundo antigo contribuiu tanto para a riqueza e a compreensão da Política, no seu sentido mais amplo, como o fizeram os gregos. Foram os gregos que inventaram não apenas a democracia, mas também a política, entendida como “a arte de decidir através da discussão pública”. A Ágora, a assembleia grega, era como um verdadeiro comício ao ar livre, aberta a qualquer interessado, e qualquer tema, absolutamente qualquer tema podia ser discutido, sendo que, em princípio, todos os presentes tinham o direito de tomar a palavra: era a isegoria, “o direito universal de falar na Ágora”, um sinônimo de democracia. E todos ouviam, e todos falavam... ninguém atirava pedras em niguém!

Ainda bem que na Grécia Antiga não havia rádio, muito menos as ratazanas radiofônicas. Certamente, havendo, as “ratazanas gregas” poderiam pôr a perder a célebre e promissora democracia que ali nascia e se desenvolvia, e a humanidade não evoluiria socialmente. Ainda bem.



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terça-feira, 18 de maio de 2010

Governo Lula desvirtua o PNDH-3 e fortalece setores conservadores

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, apesar dos grandes e importantes avanços nas políticas sociais e de transferência de renda, ainda, e lamentavelmente, se configura como um governo não só dos banqueiros, mas também dos ruralistas, dos militares, da Igreja Católica, dos donos da mídia e de tudo o que há de mais conservador e retrógrado neste país. É um governo que interessa às elites, porque ainda permite que elas sobrevivam com as presas cravadas em seu pescoço, a sugar o seu sangue. É governo dessa gente, menos do povo, que trabalha e luta por dias melhores. E isso é lastimável.

Fosse o governo Lula verdadeiramente do povo e para o povo, aproveitando o inabalável índice de popularidade que o presidente goza, não teria recuado e mudado a redação da terceira edição do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) para agradar a esses grupos que querem o Brasil e o povo brasileiro eternamente sob suas curtas rédeas.

O PNDH-3 é um programa resultado de dois anos de amplos debates com a sociedade, em dezenas de conferências por todo o país, onde participaram mais de 14 mil pessoas, de setores do governo, da sociedade civil e de movimentos sociais. Portanto, não é produto do governo Lula ou saído das entranhas de qualquer movimento político ou social, mas do debate entre os diversos setores da sociedade nas três esferas, que se interessaram em construir o documento. Se os ruralistas, os militares, a Igreja Católica e os barões da mídia não quiseram participar dessa construção, ou se participaram, não contribuíram como deveria, agora não tinham o direito de espernear depois que o documento, extraído do relatório final da Conferência Nacional de Direitos Humanos, virou Decreto presidencial e foi publicado, em dezembro do ano passado.

Mas espernearam, e atacaram ferozmente, o decreto e o governo, de todas as formas – principalmente usando a grande mídia que dominam e que sabem ser capaz de fabricar alienação em massa –, usando adjetivos que iam de autoritário a revanchista.

Esses setores que hoje comemoram o recuo do governo no PNDH-3 sempre se alimentaram da pobreza, da deseducação e da desinformação, e querem a todo custo manter seus privilégios históricos, sustentado-se na desigualdade social gritante, que ainda é a nódoa mais vergonhosa que carrega essa nação. 

E o pior é que essa gente, que sempre viveu às custas de um Brasil ignorante, doente, alienado e à serviço do grande capital internacional, nunca estará satisfeita e continuará a pressionar e atacar o governo e os movimentos sociais que lutam pela causa dos direitos humanos até conseguir alcançar o seu objetivo mais sórdido, que é a descaracterização completa do Programa, até torná-lo ineficaz, letra morta.

E o pior é que Lula, um homem que um dia se fez na esquerda, e se fez de esquerda, cedeu lastimavelmente a essa gente, determinando, inclusive, que o ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi ouvisse as queixas desses setores descontentes e negociasse as mudanças necessárias para que o texto “passasse”, não importando sua eficácia.

E o que tanto incomodava essa gente raivosa e que precisava ser modificado? Em resumo, itens que mudavam, de forma pontual, mas significativa, a estrutura social vigente:

1. O decreto original falava em “apoiar a aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos”, e ganhou novo texto, onde se eliminou a possibilidade de descriminalização da prática abortiva; a nova redação diz apenas “considerar o aborto como tema de saúde pública, com a garantia do acesso aos serviços de saúde”. Ponto para a Igreja.

2. O decreto também modificava a proposta de institucionalizar a audiência pública nos processos de ocupação de áreas rurais e urbanas. A proposta era criticada pelo Ministério da Agricultura e pela Confederação de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) – carne e unha. Com a nova redação, a ideia de propor um projeto de lei sobre a mediação prévia entre latifundiário e ocupantes é mantida, mas “sem prejuízo de outros meios institucionais”, como a velha e conhecida reintegração de posse. Ponto para os ruralistas e grileiros do país.

3. Os donos dos meios de comunicação, célebres incentivadores de práticas que atentam contra os direitos humanos em seus veículos e que rendem bons pontos no Ibope, também foram atendidos pelo governo. O PNDH-3 não mais propõe a criação de lei prevendo “penalidades administrativas, suspensão da programação e cassação de concessão para os veículos que desrespeitarem os direitos humanos”. O novo texto apenas sugere “a criação de marco legal, nos termos do art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados”. Ponto para os tubarões da mídia.

4. Os militares, os primeiros que espernearam contra o Programa, também tiveram suas queixas atendidas na nova redação do PNDH-3. Foram modificadas a parte que tratava da produção de material didático-pedagógico sobre o regime de 1964-1985 e “a resistência popular à repressão”. A nova redação também não mais propõe “identificar e sinalizar locais públicos que serviram à repressão ditatorial”. No novo texto, tudo ficou mais genérico. Fica mantida a proposta de produção de material didático-pedagógico “sobre graves violações de direitos humanos”, ocorridas no período de 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988 (data da promulgação da Constituição Federal); e a identificação de locais públicos será feita em pontos onde tenham ocorrido “prática de violações de direitos humanos”. Palmas para os milicos!

E a Comissão Nacional da Verdade? Bom, os militares que serviram ao regime ditatorial podem dormir mais tranquilos. O PNDH-3 não levará a uma revisão da Lei de Anistia, tampouco possibilitará julgamento e punição daqueles envolvidos em crimes como tortura, estupro, morte e desaparecimento de opositores do regime. Lula, muito bonzinho com essa gente, decidiu que a criação da Comissão Nacional da Verdade, para esclarecer fatos ocorridos durante os Anos de Chumbo, será submetida ao Congresso Nacional e envolverá a apuração de violações cometidas também por militantes da esquerda armada. Ou seja, os torturados, perseguidos e violentados terão o mesmo tratamento que seus algozes. Nada mais trágico, num país de tantas tragédias.

Há que se lastimar e repudiar essa capitulação do governo federal frente à pressão desses setores conservadores da Igreja Católica, dos latifundiários – sempre sedentos por mais terras –, da meia dúzia de famílias que controlam a mídia nacional e dos setores antidemocráticos das forças armadas.

O Brasil, mais uma vez, desperdiça uma grande chance de propor uma mudança, mesmo que pequena, na sua estrutura social vergonhosamente desigual, concentradora, racista e sexista. Tudo para que se mantenham os privilégios seculares desses que sempre se valeram das promíscuas relações com o poder político, usufruindo dos recursos públicos como se fossem privados e pautando a agenda nacional para atender aos seus interesses mais mesquinhos.

O governo Lula poderia ser mais progressista e se configurar como verdadeiramente do povo, mas segue a secular rotina dos nossos governantes, de servir às elites sanguessugas e  bajular os conservadores para atender às suas aspirações mais nefastas. E o povo que se lixe!

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Praias impróprias para banho: a culpa é nossa mesmo

Causa singular estranheza o espanto das pessoas e, mais ainda, dos nossos gestores ambientais a explosão de coliformes fecais em todo o litoral aracajuano, da Praia dos Artistas até a dos Náufragos. Quase 7.000 por 100ml, quando o tolerável é de espantosos 1.000 coliformes termotolerantes por 100ml. E o vilão disso tudo foi logo encontrado: as fortes chuvas que caíram nas semanas anteriores em toda a capital e circunvizinhanças. Coitado de São Pedro, pagou o pato!

Mas a verdade é que a culpa não é coisíssima nenhuma da chuva, que cai porque tem que cair mesmo, respeitando-se leis simples da natureza, que aprendemos nas primeiras lições de Ciências na escola: calor forte, alta evaporação da água, acúmulo desses vapores na atmosfera formando nuvens, até que o choque com uma massa de ar fria torna as partículas de água mais pesadas e elas caem em forma de chuva.

Não, definitivamente, não. Por mais pesadas que tenham sido essas chuvas, a culpa não pode ser associada a elas, mas àqueles que de fato são os responsáveis pelas toneladas de coliformes fecais que entulharam o mar de Aracaju: os homens.

É muito fácil culpar a natureza pelas mazelas e sujeiras que nós mesmos produzimos, diariamente. Quando a natureza responde com fúria, as pessoas se apressam em demonizá-la ou em ver os fenômenos resultantes como pragas divinas lançadas pelos deuses em função dos pecados acumulados da humanidade. Nunca é pelas razões mais simples: porque somos prepotentes, predatórios e negligentes com a natureza, além de passivos e coniventes com aqueles a quem deixamos nos governar.

Para onde as pessoas acham que toda a sua imundície diária e o lixo que produzem vão? Desaparecem com a descarga da privada depois higienizada com Pinho Sol, ou com os sacos de lixo levados pelos lixeiros ao fim do dia? Pense um pouco no quando produzimos diariamente de excremento e lixo humanos. E para onde vai toda essa porcaria?

Simples. Sem o devido tratamento, as toneladas e toneladas de esgoto e lixo que produzimos vão parar num rio próximo que, por sua vez, vai desembocar no mar. Mesmo o lixo que produzimos, ficando ele estocado num aterro sem tratamento, acaba chegando ao mar, graças ao chorume, que penetra no solo ou é levado pelas chuvas até o rio mais próximo.

A fossa encheu, está transbordando? Fácil. Chama-se o caminhão limpa-fossa. Mas alguém já se perguntou onde é despejado todo aquele material fétido levado pelo limpa-fossa?

Então, numa região como a Grande Aracaju, ocupada por 800 mil habitantes, onde não há aterro sanitário mas lixões, e onde não existe tratamento do esgoto doméstico e industrial, para onde as pessoas acham que as porcarias que produzem vão? Para o mar, essa é a grande verdade.

Deduz-se, então, que, sendo o homem capaz de produzir grande quantidade de lixo e excremento, a falta de investimentos e políticas públicas voltadas para o tratamento do lixo e do esgoto e para a mitigação da presença impactante, do ponto de vista socioambiental, de 800 mil pessoas numa área de 800 km² fazem com que tudo seja muito, mas muito pior. Cedo ou tarde, há que se pagar o preço. E ele é alto, como estamos vendo agora.

E isso vem com os séculos de industrialização e urbanização tocadas pelas gerações que sempre preferiram ignorar os enormes problemas que produziram para empurrá-los para as que vieram pela frente. E cá estamos nós, a repetir o mesmo erro.

Moradores antigos de Aracaju se lembram muito bem de uma tal Praia Formosa, que por ser tão limpa e bela, recebia esse nome. Pois bem, com os anos de ocupação desenfreada da região entre os bairros Centro, São José e 13 de Julho, com o aumento dos esgotos domésticos caindo nos canais, somado à poluição que vinha das fábricas do Bairro Industrial (que também tinha uma bela praia, até as indústrias fabris tomarem o local) correndo pelo Rio Sergipe, a Praia Formosa foi perdendo o seu encanto e também os seus frequentadores, até tornar-se um grande esgoto a céu aberto, obrigando até mesmo a mudança do nome da praia, que acabou chamada apenas pelo nome do bairro, 13 de Julho.

Espanta-me até hoje ver pessoas pescando e se banhando por ali, geralmente, pessoas humildes, desavisadas. Mas o que chama mais a atenção é a falta de sensibilidade das pessoas que moram por ali, que preferem manter-se presas ao alto padrão dos seus apartamentos classe A e encher a boca pra dizer que moram na 13 de julho, como se fosse título de nobreza, a encarar que, no fundo no fundo, são moradores de um esgotão a céu aberto, cujo mau cheiro da imundície que eles e seus vizinhos de bairro produzem, quando sobe pra valer, impossibilita uma apreciada melhor da paisagem da Ilha de Santa Luzia, ao longe, graças às línguas negras de esgoto que correm em meio ao mangue...

E não fosse esse super sobrevivente, o mangue, a paisagem seria ainda mais melancólica. Se bem que esse mangue da 13 de Julho é passível de estudos mais apurados por parte dos biólogos. Ou ele reagiu bem às “cacas e xixas” da nobreza mediana local misturada à plebe intrusa das vizinhanças, ou é mesmo uma grande aberração da natureza. Nunca vi mangue tão alto e viçoso em área tão poluída, para (a falsa) alegria dos adeptos do Cooper e das pedaladas naquele Calçadão.

E assim caminha a humanidade, com passos de formiga em sem vontade... já dizia Lulu Santos. Até quando vamos ficar como meros e passivos observadores dessa tragédia ecológica? Até quando vamos fingir que é normal não poder tomar banho na Orlinha do Bairro Industrial, na ex-Praia Formosa, hoje 13 de Julho, na Coroa do Meio e na Praia dos Artistas, estas poluídas desde ontem, agora e sempre? Vamos aceitar com passividade essa agressão até que todo o litoral aracajuano esteja impróprio para banho? Aonde levar nossos filhos, e depois os filhos dos nossos filhos para um dia na praia, sendo aracajuano? Para Alagoas ou Bahia?

Claro, o problema do esgoto doméstico sem tratamento é uma realidade nacional e de difícil solução a curto prazo. Bahia e Alagoas certamente têm problemas semelhantes. Mas, começando por fazer o dever de casa, é preciso que os cidadãos locais e os ministérios públicos – Estadual e Federal – se unam para exigir de nossos governos e órgãos ambientais, sempre ineficientes e morosos no quesito meio ambiente (a não ser que seja para a especulação imobiliária), que comecem desde já a trabalhar para mudar esse quadro deplorável. Colocar placas de aviso “Praia imprópria para banho” é muito fácil e cômodo.

O que se quer é celeridade no processo de instalação do aterro sanitário da Grande Aracaju e investimentos maciços no aumento da oferta de esgotamento sanitário (construindo onde não existe e substituindo os esgotos clandestinos), como também, e principalmente, no tratamento dos esgotos domésticos e industriais (exigindo das indústrias a limpeza ou reaproveitamento dos seus dejetos), entre outras iniciativas, porque senão, em breve, a Praia Formosa vai se estender até o final da Praia dos Náufragos, e aí, estaremos todos nadando na merda, literalmente.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Torturadores, sorriam! O STF vos perdoa e vos afaga!


Os cães da ditadura verde e amarela, raivosos e com o gosto de sangue ainda em suas bocas saliventas de ódio, continuarão a rosnar, ameaçadoramente. Na penumbra, sorrateiros, continuarão a rosnar, prontos para dar um novo bote, na calada da noite, de surpresa, assim que a conjuntura lhes for novamente favorável. E instalarão, novamente, com a força de suas baionetas e pesados coturnos, seu Estado “democrático” sustentado pela prepotência dos seus canhões e a ameaça latente da tortura, estupro em série, assassinatos e ocultação de cadáveres dos que se opuserem a eles, para fazer valer a sua “militocracia” doentia, a sua ditadura do medo.

Sim, os cães da ditadura continuarão a rosnar, com os seus caninos afiados como adagas, ameaçadores, porque todos os crimes que cometeram no passado recente, durante quase 20 anos, foram anistiados e, hoje, sem possibilidade de qualquer revisionismo, graças à decisão do Supremo Tribunal Federal, que no último dia 29/04, por sete votos a dois, julgou improcedente a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153, movida pela Ordem dos Advogados do Brasil, e que questionava se a Lei da Anistia se aplicava aos torturadores, por considerar que o crime de tortura não se inscreve entre os "crimes políticos e conexos" previstos naquele texto e, por conseqüência, não poderia  ficar impune.

Os sete ministros que votaram pela não procedência dessa ação varreram para o limbo da história todas as atrocidades cometidas durante o Estado de Exceção. Mais enfaticamente, enterraram de vez a possibilidade de a sociedade brasileira buscar a verdade, punindo aqueles que cometeram crimes em nome do Estado contra cidadãos contrários ao regime do AI5 e das máquinas torturadoras do DOI-Codi.

Estão safos, e agora, mais fortes que nunca. Estão agora sob o manto da impunidade. Inimigos ocultos, que sentam ali, sem dor na consciência ou qualquer remorso, ao lado da dona de casa no ônibus coletivo, da criança desavisada no banco da praça, da viúva na cadeira de espera do consultório, do sujeito que assiste anestesiado ao jogo de futebol; toma até umas cervejas com ele, e o futeboleiro não sabe, não sabe de nada, e nem saberá. Ninguém saberá.

Viva a impunidade! Uma ode aos que cultuam os crimes de tortura, estupro e assassinato político como crimes comuns e passíveis de prescrição! É o Brasil do pacto com a amnésia. E ainda há quem festeje o soterramento das horrendas verdades dos agentes públicos que serviram ao Estado, na Ditadura, não para defender os cidadãos, mas para massacrá-los à base de pau-de-arara, afogamentos e choques elétricos, quando não a morte, ante a menor suspeita de insatisfação ou enfrentamento à ditadura dos generais de cinco estrelas.

Não deixa de ser covarde a decisão da mais alta corte. Foram pelo caminho mais fácil, o de deixar as coisas como estão, para não mexer nas feridas – que jamais haverão de cicatrizar – e não se indispor com os militares de altas patentes, da ativa e da caserna, os mesmos que continuam a rosnar e ameaçar a todo momento o governo pela simples existência de um Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), que institui a Comissão da Verdade e alguns dispositivos que não os agradam, tampouco a elite porca deste país, que se esforça em pregar na grande mídia que direitos humanos é coisa para bandidos, e não que seja condição sine qua non à superação da barbárie.

Surpreende, mais do que qualquer um dos seis outros votos pela improcedência da ADPF nº 153, o voto do relator, ministro Eros Graus. Ele, em pessoa, uma vítima dos porões e das torturas dos agentes do Regime Militar, enalteceu a importância da Lei de Anistia como marco político fundamental para a restituição da democracia no país. O que isso quer dizer? Em outras palavras, que o senhor Graus, ex-militante comunista, preso e torturado, para não aparecer como revanchista ou degustador do frio prato da vingança, preferiu sentenciar que a impunidade dos torturadores constitui a norma fundante da democracia brasileira; ou seja, que a democracia brasileira se funda sob as bases da injustiça, da impunidade e do esquecimento.

E ainda, afirmou não caber ao Poder Judiciário rever aquele “acordo político”, apoiado inclusive pela OAB, à época, e que, na transição do Regime Militar para a democracia, resultou na anistia de todos aqueles que cometeram crimes políticos no Brasil entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Depois disso, passou a batata quente para o Congresso Nacional, que não dá conta nem das suas tarefas básicas, quanto mais de rever a Lei da Anistia.

Confesso, não entendo até hoje as lágrimas do ministro Graus ao final do seu voto. Emoção ou vergonha?

E revendo o voto dos ministros, levanto alguns pontos obscuros. Quando falam em “anistia ampla, geral e irrestrita” e “acordo político feito à época, apoiado pela OAB, para favorecer todos os que cometeram crimes políticos no Brasil”, os senhores de toga acobertam algumas verdades e alimentam algumas inverdades.

Esqueceram, o senhor Graus e os demais ministros, de explicar, quando dizem que a Lei de Anistia tem caráter amplo, geral, irrestrito, que a mesma lei serviu apenas para atender aos interesses do Regime Militar e para proteger os torturadores, ou seja, apenas os “agentes da repressão”, pois o § 2º do art. 1º da Lei é bastante claro: “§ 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal”. Ou seja, beneficiou apenas um lado da luta, o lado dos agentes do Estado. Então, a lei nunca teve caráter amplo, geral, irrestrito.

Quando falam que até a OAB apoiou a Lei, esquecem de dizer que a Ordem apoiava entusiasticamente os golpistas e que muitos de seus dirigentes se beneficiaram com isso, tendo alguns dos seus conselheiros chegado a ocupar postos como ministros do Supremo Tribunal Federal e na Procuradoria Geral da República, graças a esse apoio. Também esquecem de dizer que o Congresso, à época, era inteiramente subserviente ao regime. Portanto, a Lei da Anistia é completamente viciada em sua origem.

E quando ressaltam a Lei da Anistia como o acordo possível para se alcançar a democracia, esquecem de citar os tratados internacionais de direitos humanos que enfatizam a impossibilidade legal de qualquer Estado autoritário se autoanistiar.

É com se estivéssemos na Segunda Guerra Mundial e, antes que o conflito tomasse o rumo do fim, antes que o Exército Vermelho tomasse de vez Berlim, o alto comando hitlerista propusesse um acordo aos aliados, para evitar muito mais mortes que as milhões já sacramentadas. O Führer e todo o seu III Reich se renderiam, desde que um acordo fosse firmado, uma lei de anistia ampla, geral e irrestrita fosse assinada. 


Aceita pelos aliados, partiriam, então, em paz, Adolf Hitler e todo o seu séquito de bestas sanguinárias para curtir as férias pós-guerra nos Alpes ou na Baviera e, tempos depois, iriam tocar a vida, numa boa, em casa. Com o acordo, todos os crimes deflagrados nos campos de concentração nazistas seriam esquecidos para sempre... simples assim. E os seis milhões de judeus mortos ali seriam apenas vagas citações em arquivos trancados e inacessíveis aos civis.

Caindo na real, o STF perdeu o bonde da história, deperdiçou a oportunidade de passar os sombrios Anos de Chumbo a limpo, para lamento e sofrimento maior das famílias dos desaparecidos políticos e das vítimas das atrocidades cometidas nas masmorras da Ditadura. E, graças aos sete ilustres ministros do STF, o Brasil está prestes a entrar numa fria, já que tem processo pendente na Corte Interamericana de Justiça devido aos casos de tortura durante o Estado de Exceção, e, muito provavelmente o país vai ser julgado culpado por não ter condições de responder aos tratados internacionais contra a tortura. Isso, sem dúvida, pulveriza as aspirações brasileiras de participar do Conselho de Segurança da ONU.

Para além disso, a decisão do STF, contrária à revisão da Lei da Anistia, alimenta de vigorosa vitamina a matilha de cães ferozes até então adormecida na caserna. E esses cães continuarão a rosnar. Porque agora, cristaliza-se a certeza da impunidade para crimes cometidos em nome de um regime ditatorial. Os facínoras estão rindo à toa.

É por essa razão que há que se temer pelo futuro. Sim, há que se temer. Pois quem soterra sob o manto do esquecimento o seu passado, tende, inevitavelmente, a repeti-lo; quem apaga ou ignora a história, corre o sério risco de ter de vivenciá-la novamente. É questão de tempo, e com o tempo não se brinca.