quarta-feira, 14 de julho de 2010

A tartaruga precisa correr: reflexões sobre o IDEB/2009


A educação do Brasil continua num grande fosso entre o desejável para um país que se quer grande e desenvolvido e a prática do que acontece no chão da escola e os resultados do que se aprende nela. Os números do IDEB – Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – de 2009, divulgados há poucos dias, mostram pequenos avanços em todos os níveis educacionais, primeira e segunda etapas do ensino fundamental e ensino médio, chegando a superar em alguns décimos percentuais metas previstas para daqui a um ano. Parece promissor, mas ainda é muito pouco.

Os números mostram que muito ainda precisa ser feito para mudar um quadro educacional de qualidade questionável que se arrasta por décadas. Quem estudou em escolas públicas até o fim dos anos 80, quando começou o desmonte do ensino público, pode até sustentar que a qualidade de muitas dessas escolas era muito boa. Mas há que se ressaltar que era para poucos.

Essa equação, o de oferecer escola pública com ensino de qualidade e para todos, o Brasil ainda não conseguiu resolver. Universalizar o acesso a escola pública, oferecer nessa escola um ensino tão bom que possibilite aos seus usuários ficar nela até o fim do ano letivo e passar de série com notas satisfatórias (sem maquiagens) é um desafio que nestes “tristes trópicos” ainda precisa ser superado.

O IDEB é um passo rumo a esse futuro desejável, porque nos permite avaliar, ano a ano, o progresso de nossas políticas educacionais. Mas o galope desses números é lento, muito lento.

Como se sabe, o índice sintetiza dois conceitos igualmente importantes para a qualidade da educação: aprovação e média de desempenho dos estudantes em língua portuguesa e matemática. A série histórica de resultados do IDEB se inicia em 2005, quando a média nacional foi de 3,8 (numa escala de 0 a 10), a partir de onde foram estabelecidas metas bienais de qualidade a serem atingidas não apenas pelo País, mas também por escolas, municípios e unidades da Federação, para se chegar a 2022 com a média 6.

Na primeira fase do ensino fundamental, o Ideb passou de 4,2 para 4,6, superando a meta prevista para 2009 e atingindo antecipadamente a de 2011. Nos anos finais do ensino fundamental, o Ideb evoluiu de 3,8 para 4,0, superando a meta para 2009 e também ultrapassando a de 2011, que é de 3,9. E no caso do ensino médio, o Ideb do Brasil avançou de 3,5 para 3,6, superando a meta nacional de 2009.

Mas, no frigir dos ovos, a grande verdade é que esses números globais escondem enormes diferenças de desempenho educacional entre os estados e os municípios brasileiros, sendo que 24% dos municípios brasileiros não atingiram a marca proposta para 2009 e oito estados, entre os quais Sergipe, não conseguiram alcançar os índices estipulados para os ensinos fundamental e médio.

Avaliando friamente os pequenos avanços do índice desde 2005, pode-se dizer que demos alguns preciosos passos... de tartaruga. Mantida a progressividade desses números, é bem possível que alcancemos a almejada média 6 em 2022.

Mas doze anos parecem um século quando vemos o atual galope frenético das economias emergentes, entre as quais se incluem o Brasil. Num mundo onde a alta tecnologia tem peso cada vez maior em todos os setores, a educação passa a ser peça chave no desenvolvimento econômico e social. Se for feito, por exemplo, um levantamento do número de cientistas, doutores e PHDs formados entre os países do BRIC – bloco onde figuram Brasil, Rússia, Índia e China –, possivelmente ficaremos para trás. E enquanto andamos a passos de tartaruga na formação desses quadros, que dependem de educação de qualidade e muito investimento, os outros três países, guardadas os problemas sociais particulares de cada um, no quesito educação, avançam como lebre, principalmente a China. E não quero crer que a fábula da corrida entre a tartaruga e a lebre, neste caso, nos seja favorável.

Um país que não consegue formar quadros de alto nível intelectual está fadado a depender de mão de obra qualificada estrangeira e a não conseguir dar suporte ao seu crescimento econômico quando a onda global lhe favorece as remadas, como o caso do Brasil neste momento em relação à maior parte do mundo.

Infelizmente, no nosso país, quando o assunto é educação, insiste-se na adoção de políticas públicas de Governo e não de Estado – que implica uma ampla formulação de projeto de Nação. Dessa forma, não se consegue superar as décadas de projetos fracassados de educação, principalmente as políticas gestadas no período neoliberal de Collor a FHC, onde a lógica de desmonte das escolas, universidades e instituições de pesquisa públicas provocou um êxodo de cientistas brasileiro e mão de obra altamente qualificada para países desenvolvidos e nos colocou neste buraco em que agora, aos poucos e lentamente, vamos tentando sair.

Para além das políticas educacionais de governos, que acabam não funcionando a contento por pura descontinuidade, já que são projetos de curto prazo feitos por um governo que é transitório, uma outra constatação é que o Brasil continuará a “galopar” a passos de tartaruga enquanto não ampliar a fatia do PIB para gastar com educação. Os mirrados 4,7% atuais são insuficientes, apesar do aumento relativo registrado no atual governo.

Em reportagem recente de fôlego sobre a África do Sul, os repórteres da The Economist fizeram um raio X completo do país que sediou a recente Copa do Mundo de futebol e apontaram, entre os grandes problemas enfrentados por aquele país – que em muitos pontos se assemelha ao nosso – justamente a educação falida. O governo sul-africano investe há pouco mais de uma década cerca de 6,1% do PIB em educação.

Ainda assim, seus resultados escolares estão entre os piores do mundo. 80% de suas escolas são “disfuncionais”, metade dos alunos deixa a escola antes de fazer os exames finais, e pouco mais de 11% consegue uma nota suficiente para poder entrar numa universidade. Um desastre, em grande parte consequência dos quase 50 anos do regime de apartheid, onde escola de qualidade só era acessível aos pouco mais de 10% da população branca.

Não estamos muito longe disso, porque também vivemos numa sociedade de apartheid, onde a segregação se escancara nas muralhas reais e estigmatizadas que separam os mundos das favelas e palafitas dos bairros nobres e condomínios fechados por este Brasil afora. Superar esta realidade só é possível investindo maciçamente em educação, para além dos atuais 4,7% do PIB.

A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, assim como muitos que defendem a educação pública, universalizada e de qualidade, estimam que o Brasil deve aplicar de 10% a 12% do PIB em educação para fazer avançar a qualidade do ensino e deixar de produzir tantos analfabetos funcionais.

A última Conferência Nacional de Educação (Conae), realizada este ano, também apontou o investimento de 10% do PIB em educação até 2014 como meta. Patamares iguais ou até superiores foram investidos por países que buscaram superar seus problemas com educação até atingirem um padrão de excelência educacional. Feito isto, foram reduzindo a fatia do PIB gradativamente. Esse é o caminho.

Sediaremos a próxima Copa do Mundo de futebol e as próximas Olimpíadas, o Pré-sal começa a dar resultados promissores, e o Brasil cresce a invejáveis 6% ao ano. Os olhares do mundo estão e estarão voltados para nós. É a hora de mostrar que este país tem mesmo compromisso em desenvolver o seu povo, tirar os pobres e miseráveis do estrato social em que se encontram para alçarem à níveis da classe média, e então figurar entre as grandes nações do mundo. Para isso, indubitavelmente, é preciso investir muito mais em educação e buscar avanços reais e significativos na qualidade do ensino. É preciso dotar a tartaruga de passos de lebre.

domingo, 4 de julho de 2010

Futebol, ópio e a invisibilidade das tragédias brasileiras


Que seja uma blasfêmia, em se tratando do “país do futebol”, mas ainda bem que a Seleção Brasileira perdeu para Holanda e voltou para casa, de mala e cuia e algumas vuvuzelas de lembrança. E ainda bem, também, que a Argentina fez pior, caindo de 4 para a Alemanha e desafinando seu tango como nunca se viu antes na história das Copas. Assim, troçando dos nuestros hermanos, a minha blasfêmia deve ganhar menos críticas daqueles brasileiros que vêem no futebol nosso mais  forte elo identificador enquanto nação e nosso melhor cartão de apresentação para o mundo.

Não cultuo o futebol como arte ou como grife de qualidade dos brasileiros, assim como não engulo o título que é dado a nossa gente, de povo pacífico e ordeiro – antes fosse altivo e guerreiro; como também, dá-me urticária a disseminação da ideia de que vivemos numa “democracia racial”. Tudo balela para amansar as massas e incutir na coletividade a passividade e a condescendência ante a tantas mazelas que persistem de norte a sul deste gigante deitado eternamente em berço esplêndido e de minar a nossa resistência ante o que é ou vem de fora.

Para mim, futebol sempre foi ópio para o povo, instrumento de alienação e catarse coletiva. O que rola nas arenas futebolísticas em nada se diferencia da prática do Panis et Circenses dos romanos da Antiguidade.

Pode parecer exagero de minha parte, mas veja como a Copa do Mundo anestesia as massas, a ponto de uma tragédia como a que se abateu sobre municípios de Alagoas e Pernambuco, assolados por pesadas chuvas, que deixaram pelo menos 46 mortos e muita destruição, não chocar a nação.

Não vi grandes mobilizações para ajudar as famílias que perderam tudo nesses municípios assolados pelas chuvas torrenciais e pela incompetência dos governantes locais. Um ou outro programa de rádio e TV, um ou outro sindicato ou central sindical, uma ou outra igreja chegou a se mexer, mas sem grandes impactos em termos de ajuda humanitária.

Ora, pelas cenas da tragédia, que mais lembravam a passagem de uma tsunami, em nada a destruição em Alagoas e Pernambuco ficariam atrás de outras grandes tragédias do mundo, mas os brasileiros a viram como algo menor, mesmo com o choque das imagens na TV. E nisso, a capacidade de mobilização da nossa gente para ajudar as vítimas e os desabrigados não chegaram nem perto de mobilizações, por exemplo, como as que foram feitas para ajudar as vítimas do Haiti, que angariou muitas doações.

Não que o Haiti, ou mesmo a Indonésia, a Somália ou outro país assolado por alguma tragédia não mereça receber a bondade e a solidariedade do povo brasileiro, conhecido mundialmente pelo valoroso espírito humanitário. Mas é que, quando a tragédia é aqui mesmo, debaixo das nossas barbas, essa solidariedade não se mostra igual.

E isso tem muito da nossa mania de rirmos de nós mesmos. Rimos tanto das nossas mazelas políticas e sociais que, mesmo quando a piada não tem a menor graça, seguimos em frente, sem tratar com mais seriedade aquilo que é realmente muito sério.

Veja como foi um sucesso, em meio à Copa do Mundo de futebol, a mobilização dos internautas em torno do “CALA A BOCA, GALVÃO” no Twitter, ficando por dias no topo dos mais acessados e comentados nessa rede social em todo o mundo; um feito! Depois veio o “CALA BOCA, TADEU SCHMIDT”, com igual sucesso. Por que os internautas não empreenderam igual esforço para puxar uma campanha de ajuda humanitária às vitimas alagoanas e pernambucanas? Certamente, os jogos da Copa eram mais importantes.

Mas esse mal do brasileiro, que não enxerga a si mesmo nem a sua gente sofrida, não vem de agora. Se recordarmos, demorou séculos para as elites brasileiras e a sociedade como um todo entenderem que o flagelo da seca, que assolava – e ainda assola – o sertão do Nordeste era um problema mais de políticas públicas e de vergonha na cara de muitos políticos que da severidade da natureza da região.

Custou tempo à sociedade brasileira para entender a dimensão dantesca dessa tragédia e para começar a ajudar os nordestinos flagelados, como também para cobrar dos sucessivos governos que trabalhassem para mitigar o flagelo, e não mantê-lo para satisfazer a sanha política dos coronéis da marca dos Sarney, dos ACM e tantos outros, que só se favoreciam com a seca e a miséria do sertanejo. Sempre tiraram seus votos dali, encabrestando as gentes sofridas e ignorantes.

Ao passo que sertanejos eram devorados pela seca persistente, os olhos dos brasileiros mais enxergavam as tragédias – não menos dramáticas – mundo afora, na África e Ásia, em países assolados por catástrofes naturais, guerras tribais sem fim e a ganância de ditadores sanguinários. Cantava-se “We are the world” da campanha mundial “USA for Africa”, mas pouco se dava atenção às músicas de Luiz Gonzaga ou à poesia denunciativa de Patativa do Assaré.

A dor dos flagelados sertanejos e a barriga roncando das suas crianças desnutridas, vivendo de disputar a palma com o gado, nunca chocaram tanto a ponto de mobilizar a nação para ver esse flagelo superado. Sempre prevaleceu uma certa invisibilidade sobre essa tragédia, assim como sobre tantas outras que de quando em quando batem à nossa cara e nos fazem lembrar do nosso real subdesenvolvimento e da nossa pouca humanidade para com nossa própria gente.

Para além das quatro linhas, temos muita coisa mal resolvida. Mas o futebol, assim como o Carnaval, ajuda a manter as coisas como estão, sem grandes comoções. Chora o povo, coletivamente, a eliminação do Escrete Canarinho numa Copa do Mundo, mas não há igual choro ante as nossas tragédias diárias.

O Mundial acabou para a “Pátria de Chuteiras”. Mas logo virão o Campeonato Brasileiro, a Taça Libertadores da América, a Copa Sul-Americana de Clubes, os campeonatos regionais... É muito ópio para um povo só!