terça-feira, 19 de outubro de 2010

Liberdade de imprensa, direito da cidadania


Excelente artigo do Dalmo Dallari sobre o caso da demissão da psicanaista e colunista Ana Rita Kehl do Estado de S.Paulo, por "delito" de opinião.

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CASO MARIA RITA KEHL
Liberdade de imprensa, direito da cidadania

Por Dalmo de Abreu Dallari

A liberdade de imprensa é um dos valores fundamentais da democracia e não deve ser confundida com liberdade de empresa sem compromisso com a cidadania. Na realidade, a liberdade de imprensa é um direito dos cidadãos, que devem ter na imprensa uma fonte de informações verdadeiras e um veículo de manifestação livre do pensamento. Isso está expresso na Constituição brasileira, que no artigo 220 estabelece que nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística, dispondo também que é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. É importante notar que o mesmo dispositivo constitucional contém a garantia da liberdade e a proibição da censura, normas que se conjugam e se complementam, não havendo como conciliar a prática da censura com o exercício da liberdade.

Não é preciso dizer mais do que isso para que fique evidente que é absolutamente contraditório, e manifestamente inconstitucional, um órgão de imprensa exigir que seja garantido o seu direito à liberdade ao mesmo tempo em que ele próprio faz uma retaliação com evidente caráter de censura política e ideológica. Note-se que a Constituição veda toda e qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística, seja quem for o censor.

Se a liberdade de imprensa é indispensável para assegurar aos órgãos de imprensa a liberdade de informar e de dar publicidade a manifestações de pensamento, é também indispensável que os órgãos da imprensa livre não ocultem ou distorçam os fatos relevantes que sejam verdadeiros, nem atuem como censores, impedindo as manifestações de pensamento que não forem de seu agrado e excluindo ou procurando marginalizar os que contrariem suas convicções e conveniências.

Censura inexistente

Essas observações são necessárias e oportunas para que seja de amplo conhecimento público que uma dessas contradições está ocorrendo agora no Brasil, envolvendo um tradicional órgão de imprensa e atingindo uma notável figura de intelectual, vítima de censura e retaliação por expressar verdades e convicções que não são do agrado de alguns editores. O que torna ainda mais chocantes os fatos é que os dirigentes do grande jornal, ao mesmo tempo em que posam de vítimas de uma censura, na realidade inexistente, agem como censores rigorosos e intolerantes e punem um "delito de opinião".
 
O jornal em questão é O Estado de S.Paulo, que vem publicando diariamente uma nota informando há quantos dias ele está sob censura, chegando agora a mais de 400 dias. Na realidade, não existe qualquer fato ou informação que ele, particularmente, esteja proibido de publicar por força de uma decisão judicial ou de imposição de alguma autoridade. Não há, portanto, qualquer censura limitando a liberdade de informação e expressão desse jornal. Ele vem usando a liberdade de imprensa, que lhe está plenamente assegurada, para divulgar diariamente, há muitos meses, uma informação que não é verdadeira.

Direito e privilégio

Como é já de amplo conhecimento público, e vem sendo motivo de indignação das pessoas que desejam e defendem a liberdade de imprensa como direito da cidadania, uma violência foi cometida por dirigentes de O Estado de S. Paulo contra a notável psicanalista, e até há pouco articulista daquele jornal, Maria Rita Kehl. Agindo e expressando-se com inatacável padrão ético e estrito respeito pela pessoa humana e pelos valores da sociedade democrática, Maria Rita Kehl vinha publicando quinzenalmente seus artigos, altamente apreciados, analisando fatos e comportamentos sociais, com a agudeza de observadora especializada em psicanálise e com o senso crítico de uma autêntica humanista.

Isso aconteceu com regularidade até o dia 2 de outubro, quando publicou um artigo intitulado "Dois pesos...", no qual, com elegância e objetividade, analisou e criticou a atitude dos que, movidos pelo egoísmo e por pretensa superioridade, manifestam indignação e inconformidade com o peso eleitoral de pessoas das camadas mais pobres da população, que, libertas das tradicionais amarras da mendicância e da dependência, adotam opção política oposta à dos tradicionais dominadores e exploradores da pobreza.

Em represália ao atrevimento da publicação desse artigo, Maria Rita Kehl foi sumariamente demitida, vítima da censura e da intolerância. Para ela a liberdade de imprensa não valia, pois na concepção dos que a despediram essa liberdade não é um direito de todos, é um privilégio dos que pertencem a uma elite superior.

Existe ainda a esperança de que do corpo dirigente daquele jornal façam parte, com voz ativa, verdadeiros democratas, que tenham consciência da importância da liberdade de imprensa para a existência de uma sociedade livre e justa, na qual não se faça qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística. 

Devolva-se a Maria Rita Kehl a sua liberdade de imprensa.

domingo, 10 de outubro de 2010

A Guerra de Quarta Geração

Li no blog Vi o Mundo, do Luiz Carlos Azenha. Leitura das mais recomendadas. Vale como um alerta para o que está em jogo hoje, no mundo, com a crescente concentração dos meios de comunicação, formando-se verdadeiros cartéis da informação no mundo. A nova guerra é pelo controle das mentes! Fique alerta!

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Guerra de Quarta Geração: “Aniquilar, controlar ou assimilar o inimigo”

Cuidado, seu cérebro está sendo bombardeado…

por Manuel Freytas, no Gaceta en Movimiento, reproduzido em espanhol pelo Pedro Ayres em seu blog e traduzido pelo Viomundo

A quarta guerra mundial já começou. Enquanto você descansa, enquanto você consome, enquanto você goza os espetáculos oferecidos pelo sistema, um exército invisível está se apoderando de sua mente, de sua conduta e de suas emoções. Sua vontade está sendo tomada por forças de ocupação invisíveis sem que você suspeite de nada. As batalhas já não se desenrolam em espaços distantes, mas em sua própria cabeça. Já não se trata de uma guerra por conquista de territórios, mas de uma guerra por conquista de cérebros, onde você é o alvo principal. O objetivo já não é apenas matar, mas fundamentalmente controlar. As balas já não se dirigem apenas a seu corpo, mas às suas contradições e vulnerabilidades psicológicas. Sua conduta está sendo checada, monitorada e controlada por especialistas. Sua mente e sua psicologia estão sendo submetidas a operações extremas de guerra de quarta geração. Uma guerra sem frentes nem retaguardas, uma guerra sem tanques nem fuzis, onde você é, ao mesmo tempo, a vítima e o algoz.

1. A guerra de quarta geração

Guerra de quarta geração (Fourth Generation Warfare – 4GW) é o termo usado pelos analistas e estrategistas militares para descrever a última fase da guerra na era da tecnologia da informação e das comunicações globalizadas.

Em 1989 começou a formulação da teoria da 4GW quando William Lind e quatro oficiais do exército e dos fuzileiros navais dos Estados Unidos produziram o documento “O rosto da guerra em transformação: até a quarta geração”. Naquele ano, o documento foi publicado simultaneamente na edição de outubro da Military Review e na Marine Corps Gazette. Embora no início da década de noventa a teoria não tenha sido detalhada,  nem tenha ficado expresso claramente  o que se entendia por 4GW, o conceito foi logo associado à guerra assimétrica e à guerra antiterrorista.

William Lind escreveu seu esboço de teoria no momento em que a União Soviética já havia sido derrotada no Afeganistão e iniciava seu colapso inevitável como sistema de poder mundial.

Portanto, a Guerra de Quarta Geração era visualizada como uma hipótese de conflito emergente do pós-Guerra Fria, tanto que alguns analistas relacionam seu ponto de partida histórico com os atentados terroristas de 11 de setembro [de 2001]  nos Estados Unidos.

Quanto à evolução das fases de guerra até a quarta geração, foi descrita assim:

Fase inicial: Arranca com a aparição das armas de fogo e alcança sua expressão máxima com as guerras napoleônicas. As formações de infantaria e a “ordem” no campo de batalha constituem seus principais objetivos e o enfrentamento entre massas de homens, sua essência. A Guerra de Primeira Geração corresponde aos enfrentamentos com táticas de linhas e colunas.

Segunda fase: Começa com o advento da Revolução Industrial e a disponibilidade no campo de batalha dos meios capazes de deslocar grandes massas de pessoas e disparar poderosos projéteis de artilharia. O enfrentamento de potência contra potência e o emprego de grandes recursos constituem a marca essencial desta geração. A Primeira Guerra Mundial é seu exemplo paradigmático.

Terceira fase: Caracteriza-se pela busca da neutralização da potência do inimigo mediante a descoberta dos flancos débeis, com a finalidade de anular a capacidade de operação, sem necessidade da destruição física do inimigo. A Guerra de Terceira Geração foi desenvolvida pelo exército alemão no conflito mundial de 1939-1945 e é comumente conhecida como “guerra relâmpago” (Blitzkrieg). Não se baseia na potência de fogo, mas na velocidade e surpresa. Esta etapa se identifica com o emprego da guerra psicológica e táticas de infiltração na retaguarda do inimigo durante a Segunda Guerra Mundial.

Em 1991, o professor da Universidade Hebraica de Jerusalém Martin van Creveld publicou um livro intitulado “A transformação da guerra”, que daria sustento intelectual à teoria da 4GW.

O autor afirma que a guerra evoluiu até o ponto em que a teoria de Clausewitz se tornou obsoleta.
Van Creveld prevê que no futuro as bases militares serão substituídas por esconderijos e depósitos e o controle da população se efetuará mediante uma mistura de propaganda e terror.

As forças regulares serão transformadas em algo diferente do que tem sido tradicionalmente, assinala van Creveld. Ele também prevê o desaparecimento dos principais sistema de combate convencionais e a conversão das guerras em conflitos de baixa intensidade (também chamadas Guerras Assimétricas).

A versão antiterrorista
Depois dos ataques terroristas de 11 de setembro [de 2001] nos Estados Unidos, a Guerra de Quarta Geração se complementa com o uso do “terrorismo midiatizado” como estratégia e sistema avançado de manipulação e controle social.

Produz-se pela primeira vez o uso sistematizado do “terrorismo” (realizado por grupos de operação infiltrados na sociedade civil), complementado pela Operações Psicológicas Midiáticas orientados para o aproveitamento social, político e militar do fato “terrorista”. A Guerra Antiterrorista (uma variação complementar da Guerra de Quarta Geração) confunde as fronteiras tradicionais entre “front amigo” e “front inimigo” e situa como eixo estratégico de disputa a guerra contra um inimigo universal invisível, disseminado por todo o planeta: o terrorismo.

A lógica do “novo inimigo” da humanidade, identificado com o terrorismo depois de 11 de setembro, se articula operacionalmente a partir da “Guerra Antiterrorista”, que compensa a desaparição do “inimigo estratégico” do capitalismo no campo internacional da Guerra Fria: a União Soviética.

A “guerra preventiva” contra o “terrorismo” (como veremos mais adiante)  produz um salto qualitativo na metodologia e nos recursos estratégicos da Guerra de Quarta Geração a serviço dos interesses imperiais da potência hegemônica do sistema capitalista: Estados Unidos.

A guerra entre potências, expressa no confronto Leste-Oeste, desaparece com a União Soviética e é substituída, a partir do 11 de setembro, pela “Guerra Antiterrorista” liderada por todas as potências e pelo império (Estados Unidos) contra apenas um inimigo: o terrorismo “sem fronteiras”.

O desenvolvimento tecnológico e informativo, a globalização da mensagem e a capacidade de influir na opinião pública mundial converteram a Guerra Psicológica Midiática na arma estratégica dominante da 4GW, em sua variação “antiterrorista”.

As operações com unidades militares são substituídas por operações com unidades midiáticas e a ação psicológica substitui as armas no teatro da confrontação.

Desta maneira, a partir do 11 de setembro a “Guerra Antiterrorista” e a “Guerra Psicológica” formam as duas colunas estratégicas que sustentam a Guerra de Quarta Geração, com os meios de comunicação convertidos em novos exércitos de conquista.

2. Guerra Psicológica (ou Guerra sem fuzis)
Na definição conceitual atual, a coluna vertebral da Guerra de Quarta Geração se enquadra no conceito de “guerra psicológica”, ou “guerra sem fuzis”, que foi assim chamada, pela primeira vez, nos manuais de estratégia militar da década de setenta.

Em sua definição técnica, “Guerra Psicológica” ou “Guerra Sem Fuzis” é o emprego planejado da propaganda e da ação psicológica orientadas a direcionar condutas, em busca de objetivos de controle social, político ou militar, sem recorrer ao uso das armas.

Os exércitos militares são substituídos por grupos de operação descentralizados, especialistas em insurgência e contrainsurgência e por especialistas em comunicação e psicologia de massas.

O desenvolvimento tecnológico e informático da era das comunicações, a globalização da mensagem e as capacidades para influenciar a opinião pública mundial converteram as operações de ação psicológica midiática na arma estratégica dominante da 4GW.

Como na guerra militar, um plano de guerra psicológica está destinado a: aniquilar, controlar ou assimilar o inimigo.

A guerra militar e suas técnicas se revalorizam dentro de métodos científicos de controle social e se convertem em uma eficiente estratégia de domínio sem o uso das armas.

Diferentemente da guerra convencional, a Guerra de Quarta Geração não se desenvolve em teatros de operação visíveis. Não há frentes de batalha com elementos materiais: a guerra se desenvolve em cenários combinados, sem ordem aparente e sem linhas visíveis de combate; os novos soldados não usam uniformes e se misturam aos civis. Já não existem os elementos da ação militar clássica: grandes unidades de combate (tanques, aviões, soldados, frentes, linhas de comunicação, retaguarda, etc.)

As bases de planejamento militar são substituídas por pequenos centros de comando e planejamento
clandestinos, desde onde se desenham as modernas operações táticas e estratégicas.

As grandes batalhas são substituídas por pequenos conflitos localizados, com violência social extrema e sem ordem aparente de continuidade.

As grandes forças militares são substitutídas por pequenos grupos de operação (Unidades de Guerra Psicológica) dotados de grande mobilidade e de tecnologia de última geração, cuja função é detonar acontecimentos sociais e políticos mediante operações de guerra psicológica.

As unidades de Guerra Psicológica são complementadas por Grupos de Operação, infiltrados na população civil com a missão de detonar casos de violência e conflitos sociais.

As táticas e estratégias militares são substituídas por táticas e estratégias de controle social, mediante a manipulação informativa e a ação psicológica orientada para direcionar a conduta social em massa.
Os alvos já não são físicos (como na ordem militar tradicional), mas psicológicos e sociais. O objetivo já não é a destruição de elementos materiais (bases militares, soldados, infraestrutura civil, etc.), mas o controle do cérebro humano.

As grandes unidades militares (barcos, aviões, tanques, submarinos, etc.) são substituídas por um grande aparato midiático composto pelas redações e estúdios de rádio e de televisão.

O bombardeio militar é substituído pelo bombardeio midiático: os símbolos e as imagens substituem as bombas, mísseis e projéteis do campo militar.

O objetivo estratégico já não é somente o poder e controle de áreas físicas (populações, territórios, etc.), mas o controle da conduta social em massa.

As unidades táticas de combate (operadores da guerra psicológica) já não disparam balas mas símbolos direcionados a conseguir o objetivo de controle e manipulação da conduta de massa.

Os tanques, fuzis e aviões são substituídos pelos meios de comunicação (os exércitos de quarta geração) e as operações psicológicas se constituem em arma estratégica e operacional dominante.

3. O Alvo
Na Guerra sem Fuzis, a Guerra de Quarta Geração (também chamada Guerra Assimétrica), o campo de batalha já não está no exterior, mas dentro de sua cabeça.

As operações já não se traçam a partir da colonização militar para controle um território, mas a partir da colonização mental para controlar uma sociedade.

Os soldados da 4GW já não são militares, mas especialistas de comunicação em insurgência e contrainsurgência, que substituem as operações militares pelas operações psicológicas.
Os projéteis militares são substituídos por símbolos midiáticos que não destroem o corpo, mas anulam sua capacidade cerebral de decidir por si próprio.

Os bombardeios midiáticos com símbolos estão destinados a destruir o pensamento reflexivo (informação, processamento e síntese) e a substituí-lo por uma sucessão de imagens sem relação com tempo e espaço (alienação controlada).

Os bombardeios midiáticos não operam sobre sua inteligência, mas sobre sua psicologia: não manipulam sua consciência, mas seus desejos e temores inconscientes.

Todos os dias, durante 24 horas, há um exército invisível que aponta para sua cabeça: não utiliza tanques, aviões nem submarinos, mas informação direcionada e manipulada por meio de imagens e notícias.
Os guerreiros psicológicos não querem que você pense na informação, mas que consuma informação: notícias, títulos, imagens que excitam seus sentidos e sua curiosidade, sem conexão entre si.

Seu cérebro está submetido à lógica de Maquiavel: “Dividir para conquistar”. Quando sua mente se fragmenta com notícias desconectadas entre si, deixará de analisar (o que, porque e para que cada informação) e se converterá em consumidor. Quando você consome mídia sem analisar os ques e os porquês, os interesses do poder imperial se movem por trás de cada notícia ou informação jornalística você está consumindo Guerra de Quarta Geração, de ordens psicológicas direcionadas através de símbolos.

As notícias e as imagens são mísseis de última geração que as grandes cadeias midiáticas disparam com precisão demolidora sobre os cérebros convertidos em teatro de operações da Guerra de Quarta Geração.
Quando você consome notícias com “bin Laden”, “Al Qaeda”, “terrorismo muçulmano”, sua mente está consumindo símbolos de medo associados ao terrorismo, “delinquencia organizada”, “vândalos”, “grevistas”.

O mesmo acontece no México quando se diz “Atenco” [localidade mexicana conhecida por ter resistido a uma ação de despejo], “macheteros” [que usam machetes, símbolo dos campesinos mexicanos], “privilegiados do SME” [o combativo Sindicato dos Eletricitários do México], “zapatistas”, “professores” e um grande catálogo de etc. Enquanto isso seu cérebro está servindo de teatro de operações para a Guerra de Quarta Geração lançada para controlar as sociedades em escala local e global.

Quando você consome a mídia sem analisar os porques e para ques ou os interesses do poder imperial que se movem por trás de cada notícia ou informação jornalística, você está consumindo a Guerra de Quarta Geração.




sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Colunista é demitidade do Estadão por "delito" de opinião

Pelo artigo abaixo, publicado em O Estado de S.Paulo, a psicanilista e colunista do jornal Ana Rita Kehl pagou com sua demissão do cargo. Veja que interessante: a colunista é demitida por opiniar numa linha diferente do jornal, que prega, insistentemente, a ideia (falsa) de que defende a liberdade de expressão e de imprensa no Brasil. 

O que eles defendem, na verdade, e isso está muito claro, é a sua "liberdade de empresa". Tem dúvida? Como bem explicou a psicanalista posteriormente, "fui demitida por um 'delito' de opinião".

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Dois pesos...

Por Maria Rita Kehl

Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.

Se o povão das chamadas classes D e E – os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil – tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.

Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por "uma prima" do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.

Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa, como no assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias.
 

Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da "esmolinha" é político e revela consciência de classe recém-adquirida.

O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família, que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de "acumulação primitiva de democracia".

Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.

Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.


Reproduzido do Estado de S.Paulo, 2/10/2010