terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

É apenas a danada da política

"Se é para ser um rompimento mesmo, seja o que Deus quiser!". As palavras do líder do governo Marcelo Déda na Assembleia Legislativa de Sergipe (Alese), Francisco Gualberto (PT), na fatídica sessão da segunda-feira 27, dita após a decisão da presidente da Casa, deputada Angélica Guimarães (PSC), de antecipar a eleição para a Mesa Diretora em um ano, joga para o divino o que é resultado da mais humana das relações de poder: a política. E como tudo que é fruto do fazer humano, também a política (e principalmente ela) é movida pelo jogo de interesses. Uma hora, o que pode ser bom para um partido ou agrupamento político, no momento seguinte, a depender da situação e dos interesses em vista, pode não ser.

É assim na política: os interesses mudam conforme a maré. E nesse mar, nem sempre a embarcação, seu comandante e toda a tripulação terão tempo bom para navegar. E com o rebuliço que aconteceu na Alese, muitos estão a preparar o bote salva-vidas, porque o tempo será de mar revolto, em meio a tempestades tropicais. E os primeiros corpos já começam a ‘boiar’, apontando que a eleição antecipada para a direção da Assembleia não passará em brancas nuvens. Até porque, PT e PMDB, os partidos do governador e do vice, Jackson Barreto, ficaram de fora da composição da Mesa diretiva para o biênio 2013/2014.

Avaliando friamente o episódio, alguns fatos chamam a atenção. Primeiro, a atual presidente reeleita antecipadamente Angélica Guimarães utilizou de uma manobra que foi logo tachada de “rasteira” e de “golpe” por governistas. Se foi golpe ou não, vale uma análise mais apurada. Do ponto de vista da presidente e dos 13 deputados que votaram favoráveis à proposta, não há que se falar em golpe ou rasteira, porque o que a deputada fez foi tão-somente interpretar (à luz de seus interesses imediatos e do seu grupo político, capitaneado pelos irmãos Amorim) a uma emenda ao Regimento da Casa, proposta em 2008, pelo mesmo líder governista Francisco Gualberto que esperneou e chamou de golpe e de rasteira a antecipação da eleição.

É preciso lembrar que o dispositivo engendrado por Gualberto e aprovado em 2008 prevê que “Para o segundo biênio de cada legislatura, a eleição da nova Mesa Diretora deverá ser realizada, em Sessão Especial, até o encerramento da Sessão Legislativa Ordinária do segundo ano da mesma legislatura”. Esse ‘até’ ficou como o pomo da discórdia...

Em 3 de dezembro de 2008, o ‘até’ funcionou muito bem para o então presidente Ulices Andrade – hoje conselheiro do Tribunal de Contas do Estado. Por interesses do governador e do seu bloco governista na Alese, foi fundamental antecipar de 15 de fevereiro do ano seguinte para o 3 de dezembro a recondução de todos os membros daquela Mesa Diretora, que incluía, além de Ulices, a hoje presidente Angélica Guimarães (PSC), então vice, e todos os três primeiros secretários, André Moura (PSC), hoje deputado federal, Adelson Barreto (PSB) e Conceição Vieira (PT), que desta vez, dançou, junto com o atual vice-presidente Garibalde Mendonça (PMDB). A oposição não chiou e também não se falou em golpe. Interessou a gregos e troianos e todos ficaram satisfeitos. Como foi decisão consensuado previamente com todos os parlamentares da Casa, não gerou qualquer atrito.

A perspectiva de ‘golpe’ urdida pelo líder Francisco Gualberto e reforçada por outros petistas, como Conceição Vieira, parte daí. Naquele momento, a antecipação foi de apenas dois meses e negociada antes. Desta feita, foi de um ano e discutida à boca miúda apenas com 14 deputados – os mesmos que ficaram e sacramentaram a fatídica votação de segunda. A própria Angélica, Adelson Barreto, Antônio Santos, Arnaldo Bispo, Augusto Bezerra, Capitão Samuel, Gilmar Carvalho, Gilson Andrade, Goretti Reis, Maria Mendonça, Paulinho da Varzinhas, Mundinho da Comase, Venâncio Fonseca e Zé Franco.

Os demais foram ‘pegos com as calças nas mãos’ e não tiveram qualquer possibilidade de reação ou de montar uma chapa. A saída foi se retirar do plenário. Pego também de surpresa, o governador Marcelo Déda teve que engolir seco a derrota palaciana e o racha na sua ‘base de vidro’.

Intrigante é que na mesma segunda-feira, o governador teve uma longa conversa com o empresário Edvan Amorim, o homem dos vários partidos na algibeira. Pelo jeito, a conversa não surtiu qualquer efeito, mesmo com a promessa do empresário de que não tinha qualquer interesse em criar tensões com o governo. Poucas horas depois, 10 mil volts de tensão pipocavam na Alese. E deu no que deu. Rompimento.

Mas o que tem deixado mesmo muito macaco velho da política de cabelo em pé foi ver a participação efetiva dos parlamentares do PSB do senador Valadares na manobra do grupo antecipista. Estavam lá Adelson Barreto (reeleito como primeiro secretário) e Maria Mendonça. Como explicar? Houve algum acordo selado entre os Amorim e Valadares? Esse acordo visa as eleições de 2012 para Aracaju ou já é uma ponte para 2014? Ou os dois deputados simplesmente ‘se rebelaram’. A última hipótese é bastante improvável. Quanto às demais, muito em breve saberemos, já que até agora as lideranças do PSB têm preferido o silêncio sepulcral. Cedo ou tarde, terão de dar explicações.

O líder da oposição na Casa, deputado Venâncio Fonseca (PP), tratou logo de ironizar.  "Lá atrás, em 2008, não foi golpe. Agora, porque não interessa ao PT, é golpe. (...) Nessa Casa não tem criança. Gualberto alterou o regimento lá atrás e deixou a brecha porque era conveniente e poderia usar no momento certo. O problema é que o momento agora não foi favorável. Ninguém mudou uma vírgula da lei que ele redigiu", disse. E é verdade.

O que tirar então desse episódio? Um, que o governo agora sabe o que há muito já se sabia: ele nunca teve uma base sólida na Assembleia, mas apenas uma base aglutinada por interesses imediatos e passageiros, e que mais cedo ou mais tarde racharia... Rachou. Que o grupo liderado pelos Amorim, de apetite voraz, se fortalecia a cada eleição e, uma hora, o tubarão engordado daria o bote... Está dado. Que a corrida para 2014 começa desde já, com os agrupamentos já definindo que caminhos tomar. Então, façam suas apostas! E, por fim, que toda essa refrega também tem um outro objetivo muito claro nos seus bastidores: a indicação de quem fica com a vaga a ser aberta em 2013 no Paraíso da administração pública estadual (de polpuda remuneração, diga-se de passagem), o Tribunal de Contas do Estado, onde se entra basicamente por QI – Quem Indica.

A antecipação de eleição para a Mesa foi benéfica para Ulices em 2008, quando serviu para pavimentar o seu caminho para conselheiro da Corte de Contas. A mesma antecipação de agora também deve beneficiar a . Em 2013, é líquido e certo: estará na ponta da disputa pela vaga aberta com a aposentadoria do conselheiro Reinaldo Moura, a deputada Maria Angélica Guimarães. A indicação é da Assembleia Legislativa. E o desejo, a ribeirinha de Japoatã, que já foi governadora por dez dias – mesmo que quase ninguém lembre – alimenta há muito.

Golpe? Rasteira? Que nada! É apenas a danada da política. E não tem bobo nessa história.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Shopping centers, mata-leões e preconceitos

Fico a me questionar se a grita de parte da imprensa e de muitos cidadãos pelo que aconteceu no último sábado, no badalado Shopping Jardins, quando Leidison Reis dos Santos foi morto por seguranças com um golpe “mata-leão” que lhe quebrou a coluna cervical, seria pela morte, injustificável sob todos os aspectos, de um trabalhador de tez escura e aparência simples ou por ter ocorrido dentro do maior templo do consumo de nossa sociedade: o shopping center, com sua áurea asséptica, tranquila e sempre convidativa às compras.

Para além da pergunta “Como pode uma coisa dessas acontecer dentro de um shopping center?”, que tantas vezes ouvi durante a semana, paira a sensação de que muitas pessoas ficaram horrorizadas com o crime muito mais por ele ter ocorrido no interior desse símbolo da impecabilidade que propriamente por se tratar de um ato desumano, estúpido e desproporcional de seguranças contra um trabalhador de pele escura, “suspeito” desde que nasceu. O rapaz, segundo a família, tinha ido tão-somente sacar dinheiro do seguro desemprego num caixa eletrônico para pagar as contas. Um ato simples e cotidiano que acabou lhe custando a vida.

Não tenho dúvida, fosse um caucasiano, usando roupas e sapato da moda, na mesma situação, o tratamento seria outro. Du-vi-de-o-dó que fosse retirado do shopping da forma como fizeram com o rapaz no sábado, a base de um “mata-leão”, tão eficiente que matou mesmo.

O que as pessoas desprezam ou fingem não ser real é que crimes como o que ocorreu dentro do mega templo do consumo sergipano, com característica nitidamente racista e preconceituosa por se mostrar seletivo, se repetem a cada segundo em todos os cantos do país, em lugares não tão limpos e não tão belos quanto os modernos centros de compras, e isso, no entanto, pouco incomoda a nossa sociedade. São só estatísticas. Mesmo que elas sejam assustadoras e, por si só, reveladoras.

No Brasil se mata muito. Assassinato virou coisa banal. O país é o mais homicida do planeta em números absolutos desde 2009. Foram quase 44 mil homicídios só naquele ano. Mais que a média de guerras como a da Chechênia, Angola, Afeganistão ou do Iraque. Entretanto, para além desse dado global chocante, em cada três assassinatos por aqui, dois são de negros. Em números de 2008, morreram 103% mais negros que brancos. Dez anos antes, essa diferença era de 20%. São números constantes do Mapa da Violência 2011.

E veja, o estudo nacional mostra ainda que, enquanto os assassinatos de brancos vêm caindo, os de negros continuam a subir. De 2005 para 2008, houve uma queda de 22,7% nos homicídios de pessoas brancas; entre os negros, as taxas subiram 12,1%. O cenário é ainda pior entre os jovens de 15 a 24 anos. Nessa faixa etária, entre os brancos, o número de homicídios caiu de 6.592 para 4.582 entre 2002 e 2008, uma diferença de 30%. Enquanto isso, os assassinatos entre os jovens negros passaram de 11.308 para 12.749 - aumento de 13%.

É o não estarrecedor, apesar do pouco incômodo que causa na maioria das pessoas? Mas também ajuda a explicar em parte o que vem ocorrendo no Shopping Jardins, já que o caso do rapaz morto por seguranças não é o primeiro registrado. A coisa cheira mesmo a preconceito de cor e classe social. Pelo menos mais cinco outras vítimas – todas pardas ou negras – relataram, em momentos distintos, terem sofrido torturas físicas e espancamentos por parte de seguranças do mesmo estabelecimento. 


O pai de uma delas chegou a relatar em um programa de rádio que o filho e um amigo foram levados para uma “jaula” com chão de brita, num lugar recolhido atrás do shopping, onde sofreram agressões e torturas por supostamente terem roubado em uma loja. Mas os rapazes tinham as notas fiscais dos produtos, provando a compra.

Veja a gravidade: há uma jaula de torturas no shopping mais chique da cidade! Mas pergunte se algum branco ou filho de branco passou por lá? Quem não se lembra da gangue de playboys baderneiros intitulada Aloha Pis, formada por jovens da classe média alta que, mimados e cansadinhos da vidinha fútil, viviam aterrorizando o shopping, com brigas e até esfaqueamento? Algum foi apreendido? Cumpriu medida socioeducativa? Passou pela jaula de tortura? Que nada. Para os filhos brancos da classe média e alta, tapinhas nas costas. Para os negros das classes mais baixas, mata-leões e torturas.

As pessoas precisam muita mais que apenas revoltar-se diante dos atos de violência patrocinados por seguranças privados do Shopping Jardins contra cidadãos não-brancos. Seria o caso de também fazerem uma leitura mais profunda das razões para chegarmos a esta situação de violência gratuita, e enxergarem além da superfície do que parece natural, e não é. Ver que as estatísticas, para além dos frios números, apontam para uma realidade cruel, que indica a existência escancarada de um apartheid social onde a discriminação contra a população negra é gritante, mas que tacitamente é escamoteada pelo falso mito da democracia racial brasileira.

Enquanto a sociedade não se debruçar sobre essa realidade e aceitar que se trata de uma questão ainda muito mal resolvida entre nós, haveremos de presenciar outros casos como o de Leidison, o trabalhador humilde de tez escura que foi a um shopping center da cidade sacar dinheiro do seguro desemprego num caixa eletrônico, a fim de pagar suas contas, e saiu de lá no rabecão do IML, morto por seguranças que, como berraram algumas pessoas nos programas de rádio matinais, “estão ali para garantir a integridade e a segurança dos clientes”. Mas de quais clientes? Esta é a questão.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Dilma, Cuba, Haiti e telhados de vidro

Por Beto Almeida

Inspirada, quem sabe, no sambista mineiro Ataulfo Alves, que, por sua vez inspirou-se em Cristo, Dilma Roussef desafiou em Havana a quem teria moral de atirar a primeira pedra no debate que, de modo distorcido, manipulado e enviesado se faz sobre direitos humanos para fazer pré-condenação a Cuba. Com estas declarações corajosas – propondo o debate a partir do centro de torturas que os EUA mantém na Base de Guantánamo - a mandatária brasileira honrou o Brasil, o povo brasileiro, não eximindo nosso país de um auto-exame, ao lembrar que todos têm telhado de vidro, até nós.


Claro, sabemos que temos uma taxa elevadíssima de homicídios, de execuções por milícias e forças segurança, de cidadãos presos mesmo com penas já cumpridas, de torturas sistemáticas em dependências policiais, de violência no campo majoritariamente impune. Raras vezes na história tivemos posturas presidenciais com tamanha coragem e sinceridade. E com uma honesta dose de auto-crítica. Sequer erradicamos o analfabetismo, ou o trabalho infantil, que, aliás, está crescendo lá nos EUA como provam a estatísticas.


Certamente, Cuba pode não ser o paraíso, mas das 200 milhões de crianças desnutridas hoje no mundo, a caminho da pena de morte da fome, nenhuma delas é cubana! E nenhuma criança cubana trabalha! As declarações da presidenta servem, sem dúvida, para colocar este debate no patamar concreto e longe das manipulações interessadas que se fazem com o uso das esfarrapadas bandeiras dos direitos humanos acenadas exatamente pelos países que mais guerras produzem, mais invasões perpetram sobre povos mais débeis, mais ditaduras constroem, mais rapinas exercitam sobre os países pobres. Na liderança, obviamente, os EUA.


Cuito Cuanavale e os Direitos Humanos


Um vergonhoso manto de silêncio e de sonegação informativa foi levantado em torno de Cuba para que o mundo não conheça suas conquistas sociais, sua resistência às agressões sofridas por mais de meio século de Revolução, incluindo-se atentados terroristas, guerras bacteriológicas comprovadas. A visita de Dilma também joga luz sobre a existência de um bloqueio midiático contra Cuba. Por exemplo: nunca se informou com a devida honestidade e relevância, a epopéia da contribuição de Cuba, na década de 70, que enviou 400 mil homens e mulheres a Angola - inclusive a filha do Che - para defender a independência do povo angolano cujo território foi ocupado por tropas da racista África do Sul de então.


Como afirma Nelson Mandela, a humanidade deve a Cuba a derrota do cruel regime do apartheid, derrotado por tropas cubanas-angolas-namibianas na Batalha de Cuitocuanavale. Com o nascimento de Telesur já se informa corretamente sobre esta contribuição de Cuba para libertar a África do apartheid. Talvez um acordo da TV Brasil com a TV Cubana permitisse desfazer centenas de desinformações, mitos e distorções construídos contra a ilha caribenha. E colocar uma dose de realismo e objetividade no debate sobre direitos humanos, como sugere Dilma.


A política externa brasileira, afirmada e expandida a partir de Lula, agora continuada por Dilma, é uma forma prática e concreta de furar aquele bloqueio. A presença do estado brasileiro, com o BNDES, com a Embrapa, a Petrobrás, empresas privadas, movimentos sociais, os acordos na área de saúde e de desenvolvimento agrário, é mais que um enfrentamento efetivo ao bloqueio dos EUA sobre a Ilha.


É também um passo decisivo na linha de uma integração latino-americana e caribenha que inclui expansão produtiva, de infra-estrutura, comercial, científica, cultural, dentro da visão geoestratégica já consignada na criação da CELAC (Comunidade de Estados da Latino América e Caribe). O que revela consciência diante da necessidade de pensar um novo modelo de desenvolvimento, cooperativo, solidário, federativo, e ,também, diante da necessária prevenç ão face aos efeitos que a crise do capitalismo pode descarregar sobre nossa região, uma alternativa de longo prazo. Não há perspectiva para nenhum país isoladamente, sugerem estes acordos.


A locomotiva do Caribe


Apesar de enfurecida e desconcertada pelo comportamento independente e altivo de Dilma Roussef, a imprensa brasileira teve que reconhecer por debaixo do dilúvio de preconceitos que espargiu em sua cobertura sobre a visita presidencial a Havana, que, na prática, o Porto de Mariel, construído com participação brasileira, é uma nova locomotiva para o Caribe. Não apenas será o maior porto da região, dinamizando o comércio de toda a região, como será também um pólo industrial, estando prevista a instalação de indústria de vidros - carência crônica da região - e até mesmo a produção de açúcar e de energia da biomassa da cana. Incide também na expansão dos forças produtivas.


Neste particular, vale lembrar que há em Cuba importantes desenvolvimentos tecnológicos alcançados pel o Instituto Cubano de Investigaciones de Derivados de La Caña, criados por Che Guevara, quando Ministro da Indústria, que certamente receberão agora significativos impulsos, tendo em vista que a Odebrecht, empresa brasileira ali instalada, também atua com desenvoltura nesta área da aplicação da alcool-química, inclusive com metas de grande porte na produção de embalagens biodegradáveis.


Mas, o editorialismo preconceituoso predominante na mídia contra Cuba dificulta que o povo brasileiro possa ser informado adequadamente sobre o alcance dos acordos firmados entre Brasil e Cuba. Além dos já citados, os acordos na área de saúde incluem cooperação em pesquisa, produção de medicamentos (Fundação Oswaldo Cruz participa da empreitada), na formação de médicos e agentes de saúde, com a relevante contribuição da Escola Latina-Americana de Medicina, onde estudam centenas de brasileiros de família humildes, muitos deles do MST. Os jovens do MST, que estudam ao lado de jovens negros e pobres do Harlem, dos EUA, dificilmente teriam uma outra oportunidade para formarem-se como médicos, gratuitamente, como em Cuba. Bom tema para incluir no debate concreto sobre direitos humanos, não?


Haiti


Pela pedagogia dos gestos e atitudes Dilma Roussef revelou pontaria política de alcance internacional ao dar uma banana ao Fórum de Dados e preferir ao Fórum de Porto Alegre, onde afirmou que as fórmulas européias para crise são fracassadas. Além disso, em seu discurso aos movimentos sociais, citou a Revolução dos Cravos e a canção Grandola, Vila Morena, “O povo é que mais ordena”, ressaltando que enquanto na Europa se destroem salários, direitos sociais e práticas democráticas pela tirania dos banqueiros, na América Latina está sendo construído um outro mundo possível, seja pela expansão dos direitos sociais, pelo crescimento econômico, pela distribuição de renda e pela integração regional com o fortalecimento do MERCOSUL, da Unasul, e , agora, da CELAC.


A Europa, tida como avançada, retrocede e se rebaixa ao capital especulativo, à imposição dos países mais fortes sobre os mais fracos, à ditadura financeira, com retrocesso sócio-econômico e agressão militarista contra a Palestina, a Líbia, a Síria, o Irã. Sem esquecer as novas ameaças da militarista Inglaterra contra a Argentina, que recebe, por sua vez, a solidariedade brasileira na defesa da soberania platense sobre as Malvinas.


Direitos humanos, uma dimensão concreta


Seguindo a lógica sempre destacada por Lula - a integração pressupõem o crescimento de todos os países juntos - Dilma de Cuba para o Haiti para firmar novos acordos de cooperação, em parceria com Cuba, que alcançam a doação de ambulâncias, medicamentos, construção de unidades de saúde, hospitais, laboratórios, dando uma dimensão concreta e clara do que significa contribuir para a valorização dos direitos humanos em escala internacional.


Além disso, o Batalhão de Engenharia do Exército, que já realizou diversas obras de infra-estrutura no Haiti (pontes, cisternas, estradas), antes e depois do trágico terremoto, está a construir a única usina hidrelétrica daquele país, que tem merecido, uma vez mais, o mais completo desprezo por parte de países como EUA e França, que negam-se , até hoje, a realizar o depósito dos recursos em favor do povo haitiano, descumprindo compromisso com a ONU. E são os que mais acenam a bandeira esfarrapada dos direitos humanos para justificar guerras e matanças, como na Líbia e na Síria agora.


Jornalismo de integração


Por fim, vale questionar o enfoque da mídia brasileira na cobertura sobre a viagem de Dilma a Cuba e Haiti, pontuado pela desqualificação dos países visitados como se fosse viagem inútil e perdida. Perdida talvez tivesse sido a viagem de Dilma a Davos. Será que numa eventual viagem da presidenta aos EUA, por exemplo, este jornalismo de desintegração, de separação dos povos, de hostilidade à cooperação, daria o mesmo espaço à cobertura com entrevistas aos sem-tetos norte-americanos, aos ocupantes de Wall-Street, às estatísticas das violações de direitos humanos ali, à indagação sobre os presos e desaparecidos em razão da Lei Patriótica após o 11 de setembro, aos prisioneiros seqüestrados ilegalmente em qualquer parte do mundo e transladados para a câmara de tortura de Guantánamo? Será que esta mídia condenaria Dilma por, eventualmente, criticar ou não somar-se ao belicismo do Prêmio Nobel da Paz, Barack Obomba?


Sim, tem razão a presidenta quando afirma que todos possuem telhados de vidro. O que coloca nova ótica na discussão e reflexão sobre o tema dos direitos humanos. Particularmente aos que aqui, nas fileiras da esquerda, esgrimem a bandeira de direitos humanos contra Cuba, mas se calam contra a arbitrária prisão do jornalista negro Múmia Abu Jamal nos EUA, condenado por juiz racista a pena de morte, agora comutada para prisão perpétua. Ou que se calam diante dos assassinatos de cientistas iranianos, que se calaram diante da matança de 200 mil líbios pela OTAN que tanto bradou hipocritamente a bandeira dos direitos humanos.


O jogo está sendo jogado e neste xadrez Dilma entra não apenas com uma postura e declarações corajosas que ,aliás, marcam sua vida. Entra também com a expansão dos acordos de cooperação entre povos, com a solidariedade concreta, com investimentos, com mais protagonismo de estado, com ajuda técnica, financeira, alavancando uma nova América Latina e Caribe, no âmbito da CELAC. Contribui, com isto, para virar a página da herança colonialista dos Cem Anos de Solidão e abrir a nova era, ainda embrionária, dos Cem Anos de Cooperação. Para o quê falta, urgentemente, um jornalismo de integração.


* Beto Almeida é membro da Junta Diretiva da Telesur