quarta-feira, 21 de março de 2012

TV Cultura, uma nova privataria em curso

por Joaquim Ernesto Palhares


A ninguém mais é dado o direito de supor que o colapso da ordem neoliberal conduzirá, mecanicamente, à redenção da esfera pública na vida da sociedade. O que se verifica em muitos países, sobretudo na Europa, é que o pior pode acontecer. A imensa reconstrução a ser enfrentada ainda espera por seus protagonistas históricos. Em muitos casos, sequer existe o que recuperar. A crise realçou carências antigas; respostas nunca antes contempladas de fato, aguardam uma equação inovadora.

Esse é o caso, por exemplo da democratização da mídia. Em São Paulo, nesse momento, o esfarelamento da TV Cultura, uma emissora pública que nunca assumiu integralmente a sua vocação, é uma referência dos desafios a superar.

A exceção de um pequeno hiato nos anos 80, quando, inclusive, alcançou índices de audiência de até 14 pontos, a televisão pública paulista teve seus objetivos desvirtuados pela asfixia, ora financeira, ora política. Ou, como acontece agora, espremidos pelo duplo torniquete de constrangimentos institucionais e econômicos.

Dela pode-se dizer que até hoje não superou uma crise de identidade que conduz à permanente oscilação entre ser um canal estatal, um veículo público ou um arremedo amesquinhado de emissora comercial.

A longa agonia da TV Cultura de São Paulo está longe de ser um problema apenas financeiro, como se alardeia, e menos ainda de natureza técnica. Nichos de qualidade indiscutível comprovaram a capacidade dos profissionais que ali passaram de gerar uma programação diferenciada, de irretocável competência. Suas raízes são políticas, agravadas pelo peso de uma agenda histórica que hoje definha. Aqueles que decretaram a irrelevância da esfera pública na construção da sociedade brasileira e de seu desenvolvimento não poderiam jamais ter um projeto coerente de emissora de televisão, voltada para os interesses gerais da cidadania.

Esse é o cerne da montanha-russa vivida pela TV pública paulista nas últimas décadas. Ele explica por que, no Estado mais rico da federação, uma emissora criada há 45 anos, ainda não sabe a que veio; não tem laços orgânicos com a cidadania; não dispõe de estrutura estável de financiamento e, sobretudo, continua a mercê do arbítrio de governantes de plantão que nomeiam e cortam cabeças ao sabor de suas conveniências fiscais e, pior que isso, eleitorais.

A crise da TV Cultura, é forçoso repetir, alinha-se a um processo corrosivo que, por quase três décadas, hostilizou, desdenhou, induziu ao sucateamento e estigmatizou aos olhos da opinião pública tudo o que não fosse mercado; tudo o que não fosse interesse privado, que não refletisse uma eficiência medida em cifras e valores negociados em bolsa, foi desqualificado e loteado.

Nesse funeral da coisa pública, seria um milagre se a emissora de TV do Estado que se notabilizou como a trincheira ideológica desse credo, tivesse outro destino que não o recorrente arrastar de demissões, o liquidacionismo de acervos, programações e talentos. Tudo a desembocar num eterno e desairoso recomeço rumo a lugar nenhum.

A essa montanha desordenada de impulsos irrefletidos agrega-se agora um novo golpe: o loteamento da grade de programação pública aos veículos de mídia privada, alinhados à doutrina e aos interesses dos ocupantes do Palácio dos Bandeirantes.

Reconheça-se a pertinência de um espaço ecumênico de debate jornalístico numa televisão pública, como contraponto à insuficiência – para dizer o mínimo – do noticioso oferecido pela maioria das emissoras comerciais.

Não é disso, porém, que se trata. Quando se concede, unilateralmente, a uma corporação midiática, caso da Folha de São Paulo, 30 minutos semanais, em horário nobre, o que se sugere é uma apropriação do sinal público pela endogamia de interesses que não são os da sociedade.

A construção de uma verdadeira emissora pública de televisão em São Paulo -e no Brasil – não é um capricho ideológico, mas uma necessidade da democracia brasileira. Trata-se de um serviço que a lógica privada do lucro não se dispõe, nem tem condições de atender.

Não é fazendo da TV Cultura um anexo do ‘jornalismo amigo’ produzido na Barão de Limeira que esse objetivo será alcançado.

O desmonte da TV Cultura tem que ser interrompido. Mais que isso, hoje ele tem condições de ser contrastado. O colapso da hegemonia neoliberal reforçou o discernimento da sociedade para a urgente necessidade de se construir exatamente o inverso do que se arquiteta sob as asas da Fundação Padre Anchieta. Ou seja, substituir a dominância dos interesses privados pela regulação democrática das demandas e aspirações da sociedade.

Em São Paulo, o primeiro passo nessa direção tem que ser dado agora. É preciso impedir que uma privatização anômala do sinal público seja consumada na TV Cultura.


Joaquim Ernesto Palhares –Diretor de Redação de Carta Maior