Foram quase 21 anos de caduquice, mas, enfim, foi-se por terra a chamada Lei de Imprensa, sepultada pelos senhores ministros e ministras do Supremo Tribunal Federal, no último dia 30 de abril. Digo caduquice porque a Lei Federal 5.250/67, que regulamentava a liberdade de manifestação do pensamento e de informação, desde a promulgação da Constituição Cidadã, em outubro de 1988, era praticamente letra morta, pois vários de seus artigos colidiam frontalmente com esta última. E quem conhece minimamente de legislação sabe que nenhuma lei menor pode se sobrepor a uma outra maior; e a Carta Magna é a nossa lei maior.
Portanto, a Lei de Imprensa, na prática, já não se sustentava, já não servia para muita coisa, a não ser nos lembrar que um dia o Brasil teve uma lei linha dura, ditatorial para enquadrar jornalistas, imprensa e até espetáculos e diversões públicas. Era um anacronismo, em tempos de Estado Democrático de Direito. Mas mesmo ultrapassada, havia nela dispositivos que resguardavam alguns direitos ao cidadão e regras a serem seguidas por jornalistas e empresas de comunicação no exercício de informar. E sem uma Lei de Imprensa, ficam, então, alguns pontos em aberto, mal resolvidos: será que a Constituição Federal, por si só, dá cabo de resolver todas as questões que permeiam o intricado universo da comunicação e da mídia, nesses tempos bicudos de economia globalizada e informação instantânea tratada como mercadoria de alto valor agregado? Será que o Código Penal brasileiro, tão antigo (é de 1940!) e, por vezes, tão ultrapassado quanto a extinta lei vai dar cabo de penalizar com justeza os possíveis crimes de imprensa? Enterrar a Lei de Imprensa sem que nenhum marco regulatório ficasse em seu lugar é bom para a sociedade? Penso que não.
O senhor ministro relator Carlos Ayres Britto, de forma acertada e com bases jurídicas incontestáveis, havia derrubado, no ano passado, 20 dos 77 artigos da Lei de Imprensa que colidiam frontalmente com a CF. Mas daí ao STF derrubá-la por completo sem que haja um marco regulatório para questões que envolvem a difusão de informação e os possíveis excessos de jornalistas e empresas de comunicação contra o(s) cidadão(s) não-jornalista(s) traz muitas preocupações.
É certo que a CF prevê questões fundamentais no que se refere à liberdade de expressão e a direitos, como o direito de resposta, proporcional ao agravo; a indenização por dano material, moral ou à imagem; a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem da pessoa; a garantia do direito a informação; a possibilidade de interferência da sociedade na programação de rádio ou TV que firam os princípios éticos, morais e familiares; o direito de acesso à informação; o resguardo do sigilo da fonte... Está tudo lá. Mas de forma genérica, por vezes, muito difusa.
Peguemos o caso do direito de resposta, inclusive, ponto que suscitou acirrados debates no pleno do STF durante o julgamento da argüição relativa à Lei de Imprensa. A CF garante, no seu artigo 5º, inciso V: “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”. Mas ela não aponta como se dará o efetivo cumprimento desse direito. A Lei de Imprensa tratava do tema, detalhadamente, em oito extensos artigos, esmiuçando todo o processo, de forma clara e por tipo de veículos (impressos, rádio e TV).
Entre outras questões que ficaram sem marco que as regule, considero extremamente perigosa a falta de um dispositivo legal que permita ao cidadão comum o acesso em tempo hábil ao direito de resposta quando tiver ferida a sua honra ou sua reputação. Por isso, é preciso que haja uma lei ordinária que detalhe os princípios constitucionais e que não deixe esse vazio interpretativo. Porque, nesse vácuo, certamente, tudo vai depender de elucubrações da cabeça do juiz de plantão. E aí, "Tot homines tot sententiae" (cada cabeça cada sentença, ou cada cabeça uma sentença).
É preciso urgentemente uma ferramenta legal que trate das tortuosas questões de imprensa, uma lei, que supra o vácuo deixado pela derrubada do texto de 67, que seja moderna, em consonância com o Estado Democrático de Direito, atenta às novas tecnologias e que defenda e harmonize os interesses de jornalistas, empresas de comunicação e sociedade.
E para tanto, é preciso que o Congresso Nacional assuma as suas responsabilidades – é para isso que a sociedade elege parlamentares e os remunera muito bem – e se debruce sobre a questão. É preciso lembrar aos senhores parlamentares que há 12 anos dorme naquelas duas casas o Projeto de Lei 3.232/92, que justamente dispõe sobre a liberdade de imprensa, de opinião e de informação, e disciplina a responsabilidade dos meios de comunicação.
E quando se fala em disciplinar os meios de comunicação, aí os barões da mídia sentem calafrios, repulsa. Talvez por isso não tenham levantado essa bandeira... se é que vão levantar. Cabe então à sociedade civil levantá-la, e cobrar dos seus parlamentares que discutam e votem o PL 3.232, para que nem jornalistas, nem empresas de comunicação, muito menos os cidadãos comuns fiquem à mercê de interpretações variadas sobre esse tema que é tão complexo e espinhoso, que é o trabalho da imprensa.