sábado, 9 de maio de 2009

"Tot homines tot sententiae"

Foram quase 21 anos de caduquice, mas, enfim, foi-se por terra a chamada Lei de Imprensa, sepultada pelos senhores ministros e ministras do Supremo Tribunal Federal, no último dia 30 de abril. Digo caduquice porque a Lei Federal 5.250/67, que regulamentava a liberdade de manifestação do pensamento e de informação, desde a promulgação da Constituição Cidadã, em outubro de 1988, era praticamente letra morta, pois vários de seus artigos colidiam frontalmente com esta última. E quem conhece minimamente de legislação sabe que nenhuma lei menor pode se sobrepor a uma outra maior; e a Carta Magna é a nossa lei maior.

Portanto, a Lei de Imprensa, na prática, já não se sustentava, já não servia para muita coisa, a não ser nos lembrar que um dia o Brasil teve uma lei linha dura, ditatorial para enquadrar jornalistas, imprensa e até espetáculos e diversões públicas. Era um anacronismo, em tempos de Estado Democrático de Direito. Mas mesmo ultrapassada, havia nela dispositivos que resguardavam alguns direitos ao cidadão e regras a serem seguidas por jornalistas e empresas de comunicação no exercício de informar. E sem uma Lei de Imprensa, ficam, então, alguns pontos em aberto, mal resolvidos: será que a Constituição Federal, por si só, dá cabo de resolver todas as questões que permeiam o intricado universo da comunicação e da mídia, nesses tempos bicudos de economia globalizada e informação instantânea tratada como mercadoria de alto valor agregado? Será que o Código Penal brasileiro, tão antigo (é de 1940!) e, por vezes, tão ultrapassado quanto a extinta lei vai dar cabo de penalizar com justeza os possíveis crimes de imprensa? Enterrar a Lei de Imprensa sem que nenhum marco regulatório ficasse em seu lugar é bom para a sociedade? Penso que não.

O senhor ministro relator Carlos Ayres Britto, de forma acertada e com bases jurídicas incontestáveis, havia derrubado, no ano passado, 20 dos 77 artigos da Lei de Imprensa que colidiam frontalmente com a CF. Mas daí ao STF derrubá-la por completo sem que haja um marco regulatório para questões que envolvem a difusão de informação e os possíveis excessos de jornalistas e empresas de comunicação contra o(s) cidadão(s) não-jornalista(s) traz muitas preocupações.

É certo que a CF prevê questões fundamentais no que se refere à liberdade de expressão e a direitos, como o direito de resposta, proporcional ao agravo; a indenização por dano material, moral ou à imagem; a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem da pessoa; a garantia do direito a informação; a possibilidade de interferência da sociedade na programação de rádio ou TV que firam os princípios éticos, morais e familiares; o direito de acesso à informação; o resguardo do sigilo da fonte... Está tudo lá. Mas de forma genérica, por vezes, muito difusa.

Peguemos o caso do direito de resposta, inclusive, ponto que suscitou acirrados debates no pleno do STF durante o julgamento da argüição relativa à Lei de Imprensa. A CF garante, no seu artigo 5º, inciso V: “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”. Mas ela não aponta como se dará o efetivo cumprimento desse direito. A Lei de Imprensa tratava do tema, detalhadamente, em oito extensos artigos, esmiuçando todo o processo, de forma clara e por tipo de veículos (impressos, rádio e TV).

Entre outras questões que ficaram sem marco que as regule, considero extremamente perigosa a falta de um dispositivo legal que permita ao cidadão comum o acesso em tempo hábil ao direito de resposta quando tiver ferida a sua honra ou sua reputação. Por isso, é preciso que haja uma lei ordinária que detalhe os princípios constitucionais e que não deixe esse vazio interpretativo. Porque, nesse vácuo, certamente, tudo vai depender de elucubrações da cabeça do juiz de plantão. E aí, "Tot homines tot sententiae" (cada cabeça cada sentença, ou cada cabeça uma sentença).

É preciso urgentemente uma ferramenta legal que trate das tortuosas questões de imprensa, uma lei, que supra o vácuo deixado pela derrubada do texto de 67, que seja moderna, em consonância com o Estado Democrático de Direito, atenta às novas tecnologias e que defenda e harmonize os interesses de jornalistas, empresas de comunicação e sociedade.

E para tanto, é preciso que o Congresso Nacional assuma as suas responsabilidades – é para isso que a sociedade elege parlamentares e os remunera muito bem – e se debruce sobre a questão. É preciso lembrar aos senhores parlamentares que há 12 anos dorme naquelas duas casas o Projeto de Lei 3.232/92, que justamente dispõe sobre a liberdade de imprensa, de opinião e de informação, e disciplina a responsabilidade dos meios de comunicação.

E quando se fala em disciplinar os meios de comunicação, aí os barões da mídia sentem calafrios, repulsa. Talvez por isso não tenham levantado essa bandeira... se é que vão levantar. Cabe então à sociedade civil levantá-la, e cobrar dos seus parlamentares que discutam e votem o PL 3.232, para que nem jornalistas, nem empresas de comunicação, muito menos os cidadãos comuns fiquem à mercê de interpretações variadas sobre esse tema que é tão complexo e espinhoso, que é o trabalho da imprensa.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Flávio Conceição: um sujeito incomum num país de leis incomuns

Difícil convencer o cidadão comum de que a lei é feita para beneficiar a todos neste Brasil de encantos mil e aves de rapina a dar de pencas. Difícil diante da aviltante aposentadoria compulsória do ex-conselheiro Flávio Conceição de Oliveira Neto, confirmada pelo pleno do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe, na sessão do último dia 23 de abril. Valor da aposentadoria: R$ 20 mil. O detalhe que torna mais incompreensível tal decisão, e que revolta os que dão duro no dia-a-dia para sobreviver honestamente, é que essa gorda aposentadoria vai cair tilintando na conta bancária do moço por ele ter trabalhado (trabalhado?) apenas seis meses como conselheiro do TCE.

Para refrescar a memória dos mais esquecidos, Conceição foi alvo da Operação Navalha da Polícia Federal, deflagrada em maio de 2007, acusado de participação em fraudes a licitações públicas, junto como outras ilustres figurinhas do jet set sergipano – e que aqui seria perda de tempo citar –, e teve que deixar o cargo sob uma avalanche de denúncias formuladas com base em inúmeras gravações telefônicas que comprovavam sua participação no mega esquema de corrupção engendrada pela empreiteira Gautama, de Zuleido Veras, amicíssimo de Flávio, esquema que desviou, só em Sergipe, com a obra da Adutora do São Francisco, algo em torno dos R$ 170 milhões dos cofres públicos.

Com tudo isso pesando sob seus ombros, o moço ainda consegue se aposentar compulsoriamente com R$ 20 milzinho no bolso. O que pode pensar o sujeito que acorda cedinho todo dia, empurra um café com pão e manteiga no bucho e, mal a gororoba lhe esquenta o estômago, tem que correr pro trabalho, e mesmo assim, com todo o sofrimento, sobrevive honestamente com um salário de fome? Que o crime compensa.

Como convencer o cidadão comum brasileiro, que dá um duro danado boa parte da vida, contribuiu religiosamente com a Previdência 25, 30 anos e, quando vai se aposentar, acaba tendo que engolir seco uma aposentadoria que mal dá pra sobreviver com dignidade, que essa aposentadoria de Flávio é merecida? E como convencer esse cidadão que as leis existem para beneficiar a todos igualmente? Difícil, muito difícil. Ainda mais quando os proeminentes conselheiros do TCE que julgaram o caso declararam ter feito tudo o que se poderia fazer, e que o ato de aposentadoria compulsória de Conceição tem previsão na Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman). “O Tribunal cumpriu apenas a lei”, declarou, com ar de quem se livra de um fardo, o presidente do TCE, Reinaldo Moura. “As leis são belíssimas!”, já escrevera Machado de Assis em seu Dom Casmurro. Belíssimas para uns poucos.

O ex-conselheiro perdeu o tão almejado cargo, mas por míseros seis meses de trabalho, boa parte conduzindo o esquema da Gautama dentro do TCE, conforme gravações da PF, vai vestir o pijama e receber R$ 20 mil mensalmente pra torrar com vinhos e docinhos de leite. Isso não é punição, é premiação. E com essa premiação, o senhor Flávio Conceição prova que pertence à casta dos cidadãos “incomuns”, àqueles a quem as leis parecem feitas sob medida para lhes servir e beneficiar, leis que dificilmente alcançam os simples mortais.

Na Constituição Federal, artigo 5º, até costa que “todos são iguais perante a lei”, mas é algo tão pouco palpável e difícil de levar a sério pelos cidadãos comuns, quanto inaplicável à medida que o noticiário do dia-a-dia, corriqueiramente, mostra que todos até são iguais perante a lei sim, mas há uns que são mais iguais que os outros. E esses uns vão rapinando, sem parcimônia ou constrangimento, a riqueza construída pelos muitos, com a voracidade de vermes sobre carne podre.

Ou a sociedade brasileira, a parte boa dela, reage e começa a exigir com mais firmeza que o Judiciário e os demais órgãos fiscalizadores mudem essa lógica perversa, ou continuaremos a ver o Brasil como terra fértil para o deleite e usufruto dessa minoria de homens incomuns, que vão tocando suas vidas e seus negócios escusos nas entranhas do Estado sem maiores preocupações, porque sabem que, mesmo pegos com a mão na botija, as leis têm lá suas brechas para que advogados muito bem pagos os livrem de ver o sol nascer quadrado e de ter que devolver aos cofres públicos o que dali tiraram sem permissão ou direito. Que nos digam os Malufs, Pittas, Barbalhos, Lalaus, Estevãos, Renans, Dantas, Zuleidos... a lista é extensa.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Jornalista sem diploma não interessa à sociedade

Na iminência do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do Recurso Extraordinário 511961, que pretende pôr fim à exigência do diploma de nível superior para o exercício do jornalismo, a categoria em todo o Brasil se mobiliza no sentido de chamar a atenção da sociedade para o fato de que, se julgado como procedente, o recurso vai desregulamentar por completo a profissão de jornalista e pôr em xeque um princípio basilar das sociedades democráticas, que é o direito não só à informação, como preconiza a nossa Constituição Federal em seu artigo 5º, mas à informação de qualidade.

Tudo isso à custa de um argumento falacioso: o de que a exigência de diploma para o exercício profissional do jornalismo impede a liberdade de expressão, nos meios de comunicação, dos cidadãos não-jornalistas. É só abrir qualquer jornal deste país ou ligar a TV para ver que esse argumento não tem sustentação. Em todos há abertura para expressões diversas e plurais nos espaços para artigos, opiniões, cartas do leitor, colunas de cola boradores etc., onde escrevem médicos, advogados, cientistas, estudantes e mesmo cidadãos comuns. Temos que levar em conta que essa abertura para a pluralidade está no próprio jornalismo profissional em si, no seu aspecto noticioso, que se vê diariamente nos jornais, nas TVs, nos rádios, nas revistas e nos sites.

Sendo assim, em face da possibilidade cada vez mais próxima de o STF julgar a inexigibilidade do diploma em jornalismo para o exercício profissional, faz-se necessário buscar respostas para o seguinte questionamento: a quem realmente interessa a desregulamentação da nossa profissão? Também é apropriado levantar a questão se à sociedade interessa à desregulamentação de uma profissão que tem impacto direito na formação da opinião pública, como é o caso do jornalismo.

Para responder à primeira questão, basta apontar quem é o autor, o reclamante na ação que culminou no Recurso Extraordinário 511961 ora no STF: trata-se do Sindicato das Empresas de Rádio e de Televisão no Estado de São Paulo (Sertesp), que congrega poderosos grupos de mídia do país ligados também a grandes jornais, revistas e conteúdo de internet. E quais os objetivos por trás dessa ação? Basicamente, dois, a meu ver: obtenção de lucros cada vez maiores no setor da informação e controle sobre a categoria. Isso porque, a tentativa de desregulamentar a nossa profissão visa quebrar não só o poder de influência dos jornalistas, como também o poder destes de contestar, inclusive, os seus próprios patrões. E no bojo desse processo, a desregulamentação poria fim à própria organização dos jornalistas enquanto trabalhadores; ou seja, eliminar-se-iam os sempre “incômodos” sindicatos da categoria. E nada melhor para o grande capitalista que poder explorar a massa trabalhadora da forma como bem lhe convier, sem ninguém
para incomodar, nem regras para “atrapalhar”.

Antes de partir para a segunda questão, mister se faz lembrar que a profissão de jornalista é regulamentada desde a sanção e publicação do Diário Oficial da União do Decreto-Lei 972, de 17 de outubro de 1969, depois de décadas de luta da categoria para ter o seu reconhecimento legal e proteção trabalhista. Portanto, há quase 40 anos, temos a nossa profissão reconhecida e regulamentada por decreto federal. Depois desse marco, o jornalismo deixou de ser mera ocupação no Brasil, tratado como bico e envolto em amadorismo e boemia, para então, a partir do Decreto-Lei 972/69, passar a ser profissão séria e respeitada, com regras e amparo legal aos trabalhadores, e cujo acesso à carreira passou a ter como condição primeira a formação acadêmica, não o famoso QI (Quem Indica) de antes, quando o que predominava nas redações era algo muito próximo da vassalagem.

Mas a sociedade evoluiu, e continua a evoluir com o avanço das tecnologias. O jornalismo, seguindo esse processo contínuo e irreversível, também evoluiu a passos galopantes a partir da década de 70, e mais vigorosamente com o funcionamento das primeiras faculdades de jornalismo, há cerca de 40 anos. Então, é estupidez imaginar que os jornalistas e o jornalismo depois desse avanço continuariam os mesmos do início do século passado, e que o amadorismo e boemia continuariam atrelados à profissão. E, portanto, trata-se de um retrocesso sem tamanho desregulamentar a nossa profissão agora, o que trará, indubitavelmente, conseqüências nefastas para os cidadãos. Na minha opinião, do mesmo modo que é danoso para uma pessoa um advogado, um engenheiro ou um médico sem formação lhe prestar atendimento, um jornalista, igualmente sem formação e despreparado, mesmo que bem intencionado, pode causar danos irreparáveis a qualquer um.

Portanto, interessa à sociedade brasileira a manutenção da exigência do diploma para o exercício do jornalismo no país, porque interessa muito mais a ela ter acesso à informação de qualidade, produzida por profissionais qualificados técnica e teoricamente, pilares para uma imprensa livre, democrática e apoiada nos princípios da ética, da moralidade e do respeito à diversidade e à pluralidade, pré-requisitos essenciais quando se trata do lidar com a exposição de pessoas, empresas e instituições públicas e privadas.