terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Wikileaks: interesse público acima do interesse de Estado

Nas últimas semanas, temos acompanhado a caçada internacional e desmesurada ao australiano Julian Paul Assange, que de uma hora para outra passou de mero web publisher a “Public Enemy Number One” dos Estados Unidos da América e de praticamente todas as grandes potências ocidentais. Fundador do site sueco Wikileaks, Assange tornou público, entre outros conteúdos de grande relevância, nada mais nada menos que 250 mil telegramas de embaixadores norte-americanos em todo o mundo trocados com Washington nos últimos 10 anos, contendo informações ditas “confidenciais” da ambígua diplomacia americana e que jamais chegariam aos cidadãos comuns não fosse o site em questão, que tem apoio, diga-se de passagem, de jornais de peso como o New York Times, The Guardian, Le Monde, El País e a revista Der Spiegel.

Por tamanha ousadia, de trazer à tona a política – muitas vezes suja – operada pela Casa Branca, CIA e FBI, Assange está pagando um alto preço. Ao colocar, com o seu site, o interesse público acima do interesse de Estado, o australiano abriu a caixa de Pandora e mostrou as verdades ocultas das operações articuladas pelo Departamento de Estado Americano para fazer valer os interesses do imperialismo ianque mundo afora. Sem dúvida, o Wikileaks pôs o rei nu e reveleram a diplomacia de intimidação e espionagem colocadas em prática por Washington.

A ousadia de Assange fez cair, também, a máscara do falso liberalismo made in USA. A democracia estadunidense, tão festejada por sua fervorosa defesa dos princípios da liberdade de expressão e de imprensa, revela, no caso Wikileaks – ou Cablegate, como está sendo chamado – toda a hipocrisia do seu sistema e prova o quanto para os americanos do norte conceitos como liberdades individuais, de expressão e de imprensa são volúveis.

No curso de Jornalismo, aprendemos logo cedo como exemplo de bom jornalismo o praticado pela dupla de repórteres do Washington Post Bob Woodward e Carl Bernstein, que revelaram o famoso escândalo Watergate a partir de informações passadas por uma fonte apenas conhecida pelo codinome Deep Throat, trazendo à tona as ações ilegais do presidente Nixon, que usava o FBI para espionar a oposição. O caso, como se sabe, acabou por derrubar o presidente bisbilhoteiro.

Bob Woodward e Carl Bernstein prestaram um grande serviço àquela nação, agindo contra os interesses do Estado naquele momento. A dupla de repórteres fez jornalismo investigativo, jornalismo “sangue no olho”, de coragem e de enfrentamento a um governo de práticas ilegais. É isso que se espera de uma imprensa livre e comprometida com o seu público.

Pois Julian Assange cumpre com o mesmo papel que Woodward e Bernstein no caso Watergate, independente de quem tenha sido o seu Deep Throat ou da forma como tenha negociado as informações que postou. Usando dessa fenomenal ferramenta de democratização da informação, a internet, fez jornalismo mesmo que em estado bruto, revelando informações ocultadas por interesses corporativos ou de governos e publicando-as para que o leitor-cidadão tire suas próprias conclusões.

Não fossem as revelações do Wikileaks, dificilmente se saberia, por exemplo, da existência de um destacamento militar especial para capturar ou matar insurgentes sem direito a julgamento nas operações militares dos EUA no Afeganistão; ou que o governo Obama está barganhando com outros países a aceitação de detentos libertados da prisão de Guantánamo (o Brasil já se negou a recebê-los).

Relativamente ao nosso país, sem o Wikileaks jamais saberíamos que o ex-embaixador norte-americano no Brasil, Clifford Sobel, criticou pesadamente o Plano Nacional de Defesa, apresentado pelo governo em 2008; ou, para surpresa de muitos, que o candidato derrotado à Presidência da República, José Serra (PSDB), prometeu que tomaria medidas para satisfazer os interesses das petroleiras estadunidenses em relação ao marco exploratório do pré-sal.

Como se vê, são informações que estão longe de serem desinteressantes, e são apenas uma minúscula fração do que o site conseguiu desenterrar. Portanto, Julian Assange presta um grande serviço aos cidadãos de todo o mundo. Condená-lo pelo que o seu site revela é condenar o jornalismo na sua essência, a liberdade de imprensa e o direito das pessoas à informação e à verdade. Trata-se, portanto, de condenar o próprio conceito de democracia como a conhecemos.

Pouco importa se o Wikileaks tem ligações com cartéis da comunicação, se o conteúdo compartilhado é ou não comprometedor para o governo norte-americano e outros, ou se Assange se tornará a Personalidade do Ano da revista Time. Importa-nos muito mais a defesa da liberdade de expressão e de imprensa e a garantia do livre fluxo da informação, e o Wikileaks acaba por reforçar objetivamente essas bandeiras em favor das sociedades livres e do jornalismo de vanguarda.

(Artigo publicado no jornal CINFORM desta semana)

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

A democracia fugiu do controle?

Para quem tem acompanhado a perseguição internacional a Julian Assange por ter desmascarado a política externa norte-americana com o seu fenomenal Wikileaks, segue um bom artigo de Izaias Almada, publicado no site de Carta Maior. Desde já, minha total solidariedade a Assange e apoio ao seu site e à sua equipe. Em breve, estaremos publicando artigo nosso referente ao assunto. Aguarde.
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A democracia fugiu do controle?


Um curioso artigo do jornalista espanhol Pascual Serrano publicado em “El Periódico de Catalunya” e reproduzido no site www.rebelion.org levanta uma questão interessante provocada pelos milhares de telegramas vazados pelo site Wikileaks na internet, mas que – de algum modo até intrigante – ultrapassa a polêmica criada na imprensa mundial diante do volume e do conteúdo ali exibidos.

Diz Serrano na introdução do seu texto que o fenômeno Wikileaks tem monopolizado numerosas análises e reflexões sobre o futuro da informação, da internet e da própria difusão de notícias. É natural. Como o direito à informação e à liberdade de imprensa se constituem em pilares, entre outros, da democracia tal qual a conhecemos e é praticada em boa parte do mundo ocidental, chama a atenção o fato de que parece se configurar com maior nitidez uma verdade que a hipocrisia de muitos ‘democratas’ procura esconder e maquiar há algum tempo: afinal existem informações e... informações. Como também existem concepções diferentes sobre a liberdade de imprensa.

Quando um país, como os Estados Unidos da América, apóia um golpe de estado contra um governo democraticamente eleito, o último exemplo é a deposição do presidente Manuel Zelaya em Honduras (mas a lista é imensa só nos últimos 50 anos), é justo encobrir ou negar essa informação? Em nome de quê? De quem? E a liberdade de imprensa onde é que fica? Os chamados segredos de estado só pesam em um dos pratos da balança?

Não é por acaso que o pensador e lingüista Noam Chomsky declara, a propósito dos recentes vazamentos no Wikileaks, que os governantes norte americanos tem profundo desprezo pela democracia, essa mesma da qual se orgulham e querem impor ao mundo através da força.

Muito a propósito, vejamos as recentes declarações do atual embaixador dos EUA no Brasil, Thomas Shannon, em artigo escrito para o jornal Folha de São Paulo no dia 2 de dezembro passado: “O presidente Obama e a secretária de Estado Hillary Clinton decidiram dar prioridade à revigoração das relações dos EUA no mundo. Ambos têm trabalhado com afinco para fortalecer as parcerias existentes e construir novas parcerias no enfrentamento de desafios comuns, das mudanças climáticas e da eliminação da ameaça das armas nucleares até a luta contra doenças e contra a pobreza.”

Obedecendo à orientação de Washington para minimizar os telegramas wikis, o blá, blá, blá retórico de Thomas Shannon é vazio de significado prático e recheado de conteúdo cínico. No contexto da América Latina, quais seriam esses desafios, senhor embaixador? O combate ao narcotráfico, por exemplo? Mas qual é o maior país consumidor de drogas pesadas no mundo e, portanto, grande sustentáculo do narcotráfico internacional, segundo relatórios da ONU? Os Estados Unidos da América. Qual o volume de dinheiro do narcotráfico branqueado em bancos norte americanos (e europeus)? Em termos mundiais, já ultrapassa a casa dos 400 bilhões de dólares por ano.

Quanto às mudanças climáticas, é sabido que até a presente data o país do Sr. Shannon ainda não assinou o Protocolo de Kyoto, criado em 1997 com o objetivo de reduzir a produção de gases poluentes, sendo os EUA o país que mais polui o meio ambiente mundial. Dispenso-me de comentar sobre o cinismo da “eliminação da ameaça de armas nucleares”. Repito aqui apenas a velha e surrada pergunta: por quê os EUA não dão o exemplo e começam a destruir o seu próprio arsenal nuclear? Sobre a luta contra a doença e a pobreza, o Sr. Shannon deveria olhar para dentro de seu próprio país e ver os estragos causados no sistema de saúde privatizado, tão bem avaliado pelo cineasta Michael Moore; ou avaliar o atual nível de desemprego e pensar nos imensos guetos de miséria espalhados pelo país, sobretudo entre afros descendentes e hispânicos.

O ainda referido artigo publicado na FSP é uma catilinária de parvoíces, eivada de frases vazias, mas sempre com aquela pontinha de arrogância com a qual os “nossos irmãos do norte” se acostumaram a tratar o mundo. Prestem atenção nessa simples e emblemática frase do embaixador norte americano no Brasil sobre os telegramas do Wikileaks, eivada de arrogância e ‘espírito democrático’: “Uma ação cuja intenção é provocar os poderosos pode, em vez disso, pôr em risco aqueles que não têm poder.” Ou seja: nós, os poderosos (leia-se EUA), se provocados, podemos pôr em risco os que não tem poder (o resto do mundo).

Mas é exatamente isso o que seu país já faz, senhor embaixador, com ou sem o Wikileaks. Como é que ficam os assassinatos de civis no Afeganistão e no Iraque? Quantos idosos, mulheres e crianças já morreram para receber (custa-me mais uma vez engolir o cinismo) a velha e empoeirada democracia de Abraham Lincoln? O que significa enviar dez mil soldados armados até os dentes para uma ajuda humanitária ao Haiti?

Volto agora ao jornalista Pascual Serrano. Sobre o debate entre defensores e críticos para saber se o site de Julian Assange comete uma irresponsabilidade com a e circulação de informação secreta, o jornalista espanhol considera que há uma simplificação do tema e que o modus operandi do próprio Wikileaks vem demonstrando que o assunto é mais complexo.

Serrano, sem mostrar duvidas quanto à veracidade dos tais telegramas, levanta a enigmática hipótese de se saber a razão pela qual, de início, o Wikileaks ofereceu de forma privilegiada e com exclusividade 250.000 documentos a cinco grandes meios de comunicação mundial, The New York Times, The Guardian, Der Spiegel, Le Monde e El País. Tais órgãos de informação divulgaram em seguida que tinham “autonomia para decidir sobre a seleção, valoração e publicação das informações que afetassem a seus países (EUA, Grã Bretanha, Alemanha, França e Espanha).

Portanto, e ainda segundo Serrano, a conivência entre o Wikileaks e o cartel criado entre esses cinco órgãos de comunicação, é absoluta. E conclui: “Não sei se a origem do site Wikileaks era limpa e honesta. O que parece claro, contudo, é que está se convertendo num objeto domesticado, a ponto de o primeiro ministro de Israel Benjamim Netanyahu afirmar que os documentos dão razão ao seu governo ao valorizar a ameaça iraniana”.

Os vazamentos Wikileaks significariam o simples desnudamento da diplomacia de intimidação e espionagem colocadas em prática por Washington, tornando explícito para o mundo aquilo que muitos já sabiam ou desconfiavam? Criam constrangimentos para o complexo industrial/militar e as grandes corporações capitalistas ou, ao contrário, significam uma nova e sofisticadíssima forma de contra-informação digna de um filme de Hollywood?

O atual líder republicano no senado norte americano, Mitch McConnell, declarou em entrevista para a rede de televisão NBC que Assange é “um terrorista de alta tecnologia”. O dano causado aos EUA é enorme e, segundo o senador, Assange deve ser julgado com todo o peso da lei. Se por acaso isso causar problemas legais, “muda-se a lei”, completou McConnell. Parece que desde a eleição de Bush filho, quando se fraudou a lei no estado da Flórida para sua eleição, ou mesmo bem antes, quando John Kennedy foi assassinado, a democracia norte americana vem mudando algumas de suas leis a fim de se manter como sendo a democracia exemplar para o resto do mundo.

Ainda é cedo para maiores projeções nessa ou naquela direção sobre os telegramas wikis ou sobre o papel representado por Julian Assange. Uma coisa é certa. A pergunta que se configura aos poucos e que o confronto entre a força avassaladora da nova informação eletrônica e a da velha mídia mundial a serviço do poder hegemônico do capitalismo nos coloca é a seguinte: a democracia representativa burguesa está fugindo ao controle de quem a tutela?