sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Entrevista exclusiva com João Pedro Stédile

 Não é todo dia que a gente se bate com o João Pedro Stédile. Tive essa sorte. Conversamos um bocado. Cara extraordinário. Aproveitei e fiz uma boa entrevista com ele, publicada no site da CUT Sergipe e que disponibilizo aqui no Blog. Vale a pena conferir.

“A reforma agrária está parada no governo Dilma”

Avaliação é do coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, João Pedro Stédile, que esteve em Sergipe para participar da I Conferência Camponesa do Estado e lançar o livro Dicionário da Educação do Campo

De passagem por Sergipe, onde veio para participar, no Assentamento Quissamã, da I Conferência Camponesa do Estado, João Pedro Stédile, coordenador nacional, fundador e maior liderança do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, deu uma pausa na sua apertada agenda – deu palestra e lançou o livro Dicionário da Educação do Campo –, para conceder uma entrevista exclusiva, onde falou sobre o pouco avanço da reforma agrária no governo Dilma, a disputa com  o agronegócio, a criminalização, por parte da mídia e do judiciário, dos movimentos camponeses e de luta dos trabalhadores, os enfrentamentos com a mídia burguesa e a necessidade de emissoras públicas sob controle da sociedade, passando por uma rápida análise sobre a situação da reforma agrária em Sergipe. Confira a seguir a entrevista com este economista, gaúcho de Lagoa Vermelha, de formação marxista e referência mundial de lutador social, que aos 52 anos continua firme na batalha obstinada por reforma agrária ampla e justa no Brasil.

- Qual a avaliação que o senhor faz da situação da reforma agrária no Brasil no governo Dilma?
João Pedro Stédile – A reforma agrária está parada no governo Dilma. Na nossa avaliação, que é compartilhada por outros movimentos sociais que atuam em todo o Brasil, isso se deve à conjugação de vários fatores. O primeiro é que ainda o agronegócio é hegemônico na sociedade, e quem defende o agronegócio criou, via imprensa nacional, uma falsa imagem de que é este tipo de negócio que será a redenção da lavoura no Brasil, que é ele que carrega o Brasil nas costas, quando é o contrário. Se o governo não liberasse R$ 120 bilhões para financiar o agronegócio, eles não aplicariam nada na lavoura. Segundo, porque o governo Dilma, sendo um governo de composição, na nossa opinião, as forças majoritárias que coordenam a agricultura no Brasil pertencem ao agronegócio, isso não só no Ministério da Agricultura; esta visão também permeia outros ministérios, como o do Planejamento, a Casa Civil e o Ministério da Fazenda. Um terceiro fator é que falta no Brasil um debate aprofundado de projeto para a o país. O governo Dilma está apenas administrando as contas públicas e a herança do Lula, mas falta ao país um debate maior de projeto, para onde vamos e o que temos que fazer. E a reforma agrária só tem sentido se ela estiver dentro do bojo de um projeto de país. Apesar de que no senso comum reforma agrária é apenas desapropriar áreas e assentar camponeses, no fundo mesmo reforma agrária é apostar num outro modelo de produção agrícola, que se contrapõe e é antagônico ao projeto do agronegócio. E um último motivo do por que da reforma agrária estar parada é que acabou havendo um loteamento besta no INCRA entre as diferentes correntes que compõem o governo federal e isso tira a unidade de um projeto nacional.

- Como assim, um loteamento besta?
JPS - Veja, nós não somos contra partidos que fazem parte do governo indicarem seus quadros para compor este governo. É da natureza da política. Mas o que relutamos em aceitar é que o INCRA, que é estilo Banco Central, ou seja, é uma área especializada e, portanto, é preciso ter quadros que entendam do assunto, no caso do INCRA, tenha pessoas que não entendam de reforma agrária. Pra se ter um ideia do descaso, tivemos um caso absurdo na Superintendência do INCRA de Goiás, onde os partidos da base do governo de Goiás sortearam os cargos públicos a que tinham direito dentro de um copo. Aí, o INCRA no estado caiu para o PTB, que indicou um dentista para o cargo, um cara que não sabe diferenciar uma espiga de milho de uma abóbora. E no fim, somos nós que pagamos essa conta.

- Stédile, e essa crise econômica internacional, que se estende ainda hoje?  Ela tem sido utilizada como discurso para emperrar ainda mais a reforma agrária e a produção agrícola familiar e dar mais força ao agronegócio, no sentido de que este produz commodities que ajudam a equilibrar a balança comercial brasileira?
JPS – A crise mundial teve dois cenários que, para mim, são, por enquanto, bastante contraditórios. O primeiro é que ela atraiu para o Brasil muito capital financeiro internacional e que foram aplicados em compra de terras, usinas (para produção de combustíveis) e hidroelétricas, e isso fez o preço do hectare de terra subir, dificultando o cenário para nós, já que o capital internacional disputou terras com o INCRA. O Segundo movimento contraditório é que os preços das commodities agrícolas internacional subiram mais de 200% da crise pra cá, porque os capitalistas foram nas bolas de mercadorias especular. Mas isso tudo é temporário e efêmero, e aí se aplica o dito popular: quanto mais alto for, maior será o tombo. Espero que as autoridades do governo Dilma tenham juízo para se dar conta de que essa euforia momentânea das exportações agrícolas não significa nem solução definitiva para os nossos problemas econômicos e muito menos para um projeto de país; pelo contrário, a conseqüência negativa de tudo isso é que o Brasil tem abandonado o seu projeto nacional, por exemplo, na indústria. O Brasil está em pleno processo de desindustrialização. Na década de 80 a indústria pesava 36% na economia nacional, hoje pesa 15%. Isto é que é muito grave, porque a indústria significa produção de riquezas e empregos a longo prazo.

- Na sua opinião, a atual formatação do Congresso Nacional, com as bancadas ruralista e empresarial fortes, também cria uma cenário muito mais difícil para a luta por reforma agrária e para os movimentos sindical e social?
JPS – Na verdade o Congresso Nacional nunca nos foi favorável e não gera política. O Congresso é o espelho do que acontece na sociedade, diferente do Judiciário e da Imprensa, que são dois instrumentos de poder que a direita controla com muito mais força, a mãos de ferro, contra a classe trabalhadora, contra a reforma agrária e contra a esquerda. O Congresso é espelho. Como estamos vivendo um longo período de refluxo dos movimentos de massa e uma apatia geral quanto à participação na política, isso se reflete no Congresso, nas pautas que são discutidas e no rebaixamento dos que são eleitos, porque para se eleger hoje, o sujeito tem que gastar milhões, e grandes empresas é que bancam. Nós só vamos mesmo melhorar o nosso Congresso Nacional quando houver financiamento público das campanhas, porque isso dará uma democratizada no processo eleitoral. Enquanto estiver do jeito que está, será sempre muito difícil para os trabalhadores e para os movimentos sociais.

- Você falou há pouco da Imprensa. Esta mesma Imprensa, que sempre te demonizou, demonizou o MST e os movimentos de trabalhadores de uma forma geral, continua forte, já que o ‘latifúndio midiático’ é outro setor que continua intocável e que segue criando dificuldades para a luta por reforma agrária e a favor dos trabalhadores...
JPS – Claro, claro! Das várias esferas de poder que há na sociedade brasileira, a mídia é onde estamos longe de ter hegemonia. Os trabalhadores de fato conseguiram disputar, em parte, o governo (federal), e ainda assim gerou-se um governo de composição de classes, como no caso dos governos Lula e Dilma. Nos governos estaduais, este cenário é ainda mais complexo. São raros os governos estaduais onde os trabalhadores tenham hegemonia. Diante deste cenário, a direita e a classe dominante se refugiaram em dois instrumentos onde elas têm controle absoluto: o Judiciário e a Mídia, que são usados como armas contra a luta social e contra os trabalhadores. Então, quando se fala em criminalização dos movimentos sociais, é preciso levar em consideração que o que está acontecendo no Brasil nos últimos dez anos, do Lula pra cá, é que a direita não precisa mais usar a repressão contra sindicalistas, nem mandar mais assassinar líderes camponeses. Claro que aqui e acolá ainda acontecem esses casos extremados de violência, mas o foco maior da criminalização é que a burguesia tem usado a imprensa para satanizar os movimentos, para desmoralizar a luta social de maneira a criar um sentimento na opinião pública de que quem luta por transformação é baderneiro, de que movimento sindical só pensa em greve, e isso é a maior forma de criminalizar, é você condenar por antecipação. É isso que tem sido feito contra os nossos movimentos.

- Mas ao menos a mídia tem te deixado um pouco mais em paz? Como está a sua relação com a imprensa nacional?
JPS – De maneira geral, não mudou nada. Continuam batendo pesado. É só o MST fazer algum movimentação de ocupação ou obter alguma conquista mais concreta que a imprensa bate e bate firme. Mas agora também já observamos uma outra forma de ‘bater’ no movimento, é ‘esconder’ o próprio movimento. Antigamente, qualquer ocupação de terra que fazíamos, imediatamente repercutia na imprensa nacional. Eles se deram conta de que isso era uma maneira de fazer propaganda pra gente. E o que é que estamos vendo agora, de uns três a quatro anos pra cá? Eles estão querendo nos ‘esconder’. A gente pode fazer a luta que for, geralmente não sai uma linha, nem pro bem nem pro mal.

- Neste caso, para os movimentos social, camponês e sindical, não seria vital lutar muito mais para construir os seus próprios meios de comunicação para fazer essa disputa?
JPS – Ah, sim, sem dúvida nenhuma! A classe trabalhadora tem que atuar em várias frentes para se contrapor à hegemonia da burguesia. Uma das frentes é construir os seus próprios meios de comunicação, sejam rádios comunitárias, jornais, boletins, ou comprar espaços na mídia comercial, rádio e televisão, mas principalmente, pressionar o governo para que tenhamos emissoras verdadeiramente públicas, sob controle social, não como vem acontecendo. Veja a TV Brasil, acabou virando uma emissora ‘chapa branca’, assim como a TV Cultura é a ‘chapa branca’ dos tucanos. Isso não pode! Temos que ter emissoras públicas com controle da sociedade e a serviço da sociedade, para que isso democratize a televisão, que é o maior instrumento de comunicação. E, ao mesmo tempo, a única maneira de alterarmos essa correlação de forças é nós estimularmos a luta social, porque o reascender do movimento de massas é que vai criar um outro clima na sociedade.

- E como você tem observado a reforma agrária mais especificamente em Sergipe?
JPS – Pra te dizer a verdade, tenho pouca informação sobre o cenário, mas acho que aqui tem mais condições de se avançar, porque o governo estadual apoia os trabalhadores. Entretanto, infelizmente, a reforma agrária é uma questão nacional e independe na maioria das vezes de iniciativas estaduais. Então, eu acredito, embora não conheça bem, seja um verdadeiro ignorante da realidade local, que a situação não é diferente da realidade nacional.

- Diante de todo este cenário de dificuldades, você continua esperançoso de que a reforma agrária avance no Brasil?
JPS – Todo mundo que trabalha nas organizações populares, seja no movimento social, sindical ou nas igrejas, quem lida com o povo tem que ser otimista sempre. Quem é pessimista ou melancólico não pode atuar com o povo. Temos sempre que ser esperançosos e passar a mensagem de que só a luta arranca conquistas. Evidentemente que na história de construção de um país, as coisas vão acontecendo por ondas; agora estamos no refluxo dos movimentos sociais, mas virão outros momentos de retomarmos a ofensiva dessa luta. É não desanimar e continuar lutando sempre, porque é a única maneira que temos para avançar.




terça-feira, 31 de julho de 2012

Infância sem espaços para a infância

Dia desses, passando por uma das ruas do meu bairro, dei de cara com um movimento singular de crianças. Num cantinho espremido da rua, entre a calçada e a pista de rolamento, em meio a uma rala camada de areia no chão, deixada espalhada ali como resto de uma reforma residencial, cinco meninos brincavam divertidamente de bolinha de gude. Não resisti. Dei meia volta, parei na outra margem da rua e fiquei a contemplar a meninada, jogando gude, inadvertida e despreocupadamente, ignorando os carros e pequenos caminhões comerciais que por ali passavam, neutros, a tirar-lhes finos perigosos, ainda que em baixa velocidade por se tratar de um rua estreita e transversal à rua principal mais larga.

No alto da minha contemplação, voltei trinta anos no tempo. Voltei à idade dos meus filhos hoje, 11 anos. Tirei algumas fotos e passei a refletir sobre a situação daquelas crianças, preservando uma brincadeira antiga, o gude, em meio a uma selva de pedras, asfalto e cimento.

Há trinta anos, quando era moleque, adorava jogar gude, assim como soltar pipa, peão, descer a rua com carrinho de rodas de rolimã, bater uma ‘pelada’ com bola de capotão ou dente-de-leite,  jogar futebol de botão, queimada, garrafão e, claro, brincar de salada de frutas, que eu não era bobo e aproveitava pra arrancar uns beijinhos e uns abraços bem dados nas meninas da rua.

Enfim, mas todas essas e outras brincadeiras eram brincadas ao ar livre, em espaços abertos, campos de grama, barro ou areia, longe de carros, caminhões e gente apressada. E ninguém se preocupava em acabar logo a brincadeira pra voltar rápido pra casa e enfiar a cara em um computador ou videogame pra buscar diversão virtual ou ‘encontrar’ os amigos no Facebook, Orkut, salas de bate-papo ou no Second Life, My Life e outras bizarrices disfarçadas de suprassumos tecnológicos da modernidade.

Hoje, em nossa cidades, a infância está imprensada nos poucos espaços livres para lazer que gestores públicos descompromissados e irresponsáveis e construtoras gananciosas deixaram paras as nossas crianças. Dei um giro mental ao longo do local em que estava – na parte central do bairro Suíssa, e percebi que a razão para aqueles garotos estarem jogando ali, no cantinho da rua, presos entre a calçada e os carros, era porque não tinham pra onde ir. Todos os espaços de campos públicos foram tomados por casas e edifícios. A grande área verde e o maior espaço aberto ainda restante, a pouco mais de 100 metros de onde estavam, era cercada por altos muros e arames farpados, e ostentava placas ameaçadoras: ATENÇÃO! ÁREA DO EXÉRCITO. Quem ousaria entrar?

As praças mais próximas eram, na verdade, arremedos de praças, pequenas, malfeitas e incrustadas entre ruas movimentadas, geralmente com um barzinho ou banca de revista instalada, que diminuam ainda mais o espaço. Sem dúvida, os meninos não tinham mesmo onde brincar.

Vejo hoje meus filhos, por exemplo, na mesma situação. Moram em condomínio de apartamentos, onde as maiores áreas de escape para as suas diversões e traquinagens são uma piscina e um parquinho com chão de cimento e ardósia (caiu, lascou-se!). Não há uma quadra de esportes ou um espaço mais amplo de areia ou grama para brincarem, até porque os moradores optaram por ampliar ao máximo o número de vagas no estacionamento para seus segundos e até terceiros carros. Carros merecem mais espaços que gente. E é assim que a maioria das pessoas pensa.

Quando vemos nossos filhos viciados em computadores e televisão, apaixonados por brinquedos eletrônicos, celulares com MP3 e jogos, ou o último game da moda, tendemos a acreditar que é coisa desta geração, que é normal, que ficamos ultrapassados porque em nosso tempo era a pipa de papel, linha e bambu, feita por nós mesmos, que nos deixava felizes, ou o peão de madeira trabalhada, com um prego afixado na ponta e um barbante, e que nos bastava pra passar deliciosas tardes de disputas no chão duro e acrobacias com o bicho girando a mil por hora.

Não é verdade. Nem estamos ultrapassados, nem estes e outros brinquedos rústicos estão. Faça o teste. Eu já fiz. Certa vez, comprei uma pipa à moda antiga e fui soltar com meus filhos na praia; eles adoraram e se divertiram um bocado. Outro dia desencavei o meu velho ioiô – umas das raras coisas que guardei da infância, assim como alguns botões de mesa e alguns poucos  selos do Brasil e do mundo – do meio das minhas tranqueiras e arrisquei umas manobras (e até que me saí bem). Eles ficaram doidinhos da silva, encantados com aquele brinquedo simples, entremeado a um barbante, girando e girando, permitindo muitas manobras diferentes (punch, volta ao mundo, cachorrinho, pulando a cerca, Torre Eiffel...); nos divertimos pra valer.

Então, não subestimemos esses brinquedos ou a simplicidade de brincar com uma criança num espaço descente, soltando uma pipa, um peão ou batendo uma bolinha com ela. Tampouco ignoremos o fato de que estamos, na verdade, empurrando nossas crianças para a televisão, o videogame e a realidade virtual dos computadores, ora porque não arrumamos tempo pra curtir a vida com eles de forma simples e rústica , ora porque não cobramos efetivamente dos gestores de nossas cidades que repensem – e muito – o modo como estão rateando os nossos espaços urbanos, deixando quase sem áreas de lazer as nossas crianças, sufocando suas infâncias. As prioridades, como se sabe, são a especulação imobiliária e ruas, avenidas e estacionamentos para os automóveis. 


E os projetos de socialização, onde estão? Os projetos de resgate dos jogos e brincadeiras coletivas, colônias de férias, incentivos às práticas esportivas e oficinas de cultura popular, onde crianças possam fazer seus próprios brinquedos e com eles de divertirem? Em nada disso nossos gestores públicos pensam. Ganham suas eleições, mas se perdem nas mesmices de governos conservadores e insossos, que mais ajudam a embrutecer as pessoas que outra coisa.

E assim nossas crianças vão crescendo, em meio ao asfalto, ao cimento e aos carros, e tendo que se virar pra achar espaços onde minimamente possam exercitar o direito de serem o que realmente são: crianças. Começo a achar que tive muita sorte ao ter nascido há quatro décadas, quando dinheiro e modernidades não eram coisas tão importantes para um menino ou menina. Importante mesmo era ter espaço pra brincar, improvisar bastante nas brincadeiras, viver e ser feliz.




sábado, 14 de julho de 2012

O crime organizado pelos banqueiros

Por Mauro Santayana

A invenção da moeda, contemporânea à do Estado, foi um dos maiores lampejos da inteligência humana. A primeira raiz indoeuropéia de moeda é “men”, associada aos movimentos da alma na mente, que chegou às línguas modernas pelo verbo sânscrito mányate (ele pensa). Sem essa invenção, que permite a troca de bens de natureza e valores diferentes, não teria havido a civilização que conhecemos.

A construção das sociedades e sua organização em estados se fizeram sobre essa convenção, que se funda estritamente na boa fé de todos que dela se servem. Os estados, sempre foram os principais emissores de moeda. A moeda, em si mesma, é neutra, mas, desde que surgiu, passou a ser também servidora dos maiores vícios humanos. Com a moeda, vale repetir o lugar comum, cresceram a cobiça, a luxúria, a avareza – e os banqueiros.

A moeda, ou os valores monetários, mal ou bem, estavam sob o controle dos Estados emitentes, que se responsabilizavam pelo seu valor de face, mediante metais nobres ou estoques de grãos. Nos tempos modernos, no entanto, a sua garantia é apenas virtual. Os convênios internacionais se amarram a um pacto já desfeito, o Acordo de Bretton Woods, de 1944. A ruptura do contrato foi ato unilateral dos Estados Unidos, sob a presidência Nixon, ao negar a conversibilidade em ouro do dólar, moeda de referência internacional pelo Acordo.

Essa decisão marca o surgimento de uma nova era, em que o valor da moeda não se relaciona com nada de sólido. Os bancos, ao administrá-la, deveriam conduzir-se de forma a merecer a confiança absoluta dos depositantes e dos acionistas, e assegurar essa mesma confiabilidade às suas operações de crédito. O papel social dos bancos é o de afastar os usurários e agiotas do mercado do dinheiro. Mas não é desta forma que têm agido, sobretudo nestes nossos tempos de desmantelamento dos estados.Hoje, não há diferença entre um Shylock shakespereano e qualquer dirigente dos grandes bancos.

Na Inglaterra, o escândalo do Barclays, que se confessou o primeiro banco responsável pela manipulação da taxa Libor, provocou o espanto da opinião pública, mas não dos meios financeiros que não só conheciam o deslize, como dele se beneficiavam.

Segundo noticiou ontem El Pais, os dois grandes executivos da Novagalícia, surgida da incorporação de duas instituições oficiais da província galega – a NovaCaixa e a Caixa Galícia – e colocada sob o controle de Madri em setembro do ano passado, pediram desculpas aos seus clientes, por ter a instituição agido mal. Entre outros de seus malfeitos, esteve o de enganar pequenos investidores mal informados, entre eles alguns analfabetos, com aplicações de alto risco, ou seja, ancoradas em débitos podres, as famosas subprimes, adquiridas dos bancos maiores que operam no mercado imobiliário do mundo inteiro.

Além disso, os antigos responsáveis por esses desvios, deixaram seus cargos percebendo indenizações altíssimas. E os novos administradores tiveram sua remuneração reduzida, por serem as antigas absolutamente irracionais. Com todas essas desculpas, a Novagalícia quer uma injeção de seis bilhões de euros, a fim de regularizar a sua situação.

Este jornal reproduziu, ontem, artigo de The Economist, a propósito da manipulação da taxa Libor, por parte do Barclays, e disse, com a autoridade de uma revista que sempre esteve associada à City, que não há mais confiança nos maiores bancos, do mundo, como o Citigroup, o J.P.Morgan, a União de Bancos Suíços, o Deutschebank e o HSBC. Executivos desses bancos, de Wall Street a Tóquio, estão envolvidos na grande manipulação sobre uma movimentação financeira total de 800 trilhões de dólares.

Para entender a extensão da falcatrua, o PIB mundial do ano passado foi calculado em cerca de 70 trilhões de dólares, menos de dez por cento do dinheiro que circulou escorado na taxa manipulada pelos grandes bancos. A Libor, sendo a taxa usada nas operações interbancárias, serve de referência para todas as operações do mercado financeiro.

O mundo se tornou propriedade dos banqueiros. Os trabalhadores produzem para os banqueiros, que controlam os governos. E quando, no desvario de sua carência de ética, e falta de inteligência, os bancos investem na ganância dos derivativos e outras operações de saqueio, são os que trabalham, como empregados ou empreendedores honrados, que pagam. É assim que estão pagando os povos da Grécia, da Espanha, de Portugal, da Grã Bretanha, e do mundo inteiro, mediante o arrocho e o corte das despesas sociais, pelos governos vassalos, alem do desemprego, dos despejos inesperados, das doenças e do desespero, a fim de que os bancos e os banqueiros se safem.

Se os governantes do mundo inteiro fossem realmente honrados, seria a hora de decidirem, sumariamente, pela estatização dos bancos e o indiciamento dos principais executivos da banca mundial. Eles são os grandes terroristas de nosso tempo. É de se esperar que venham a conhecer a cadeia, como a está conhecendo Bernard Madoff. Entre o criador do índice Nasdaq e os dirigentes do Goldman Sachs e seus pares, não há qualquer diferença moral.

Os terroristas comuns matam dezenas ou centenas de cada vez. Os banqueiros são responsáveis pela morte de milhões de seres humanos, todos os anos, sem correr qualquer risco pessoal. E ainda recebem bônus milionários.

A invenção da moeda, contemporânea à do Estado, foi um dos maiores lampejos da inteligência humana. A primeira raiz indoeuropéia de moeda é “men”, associada aos movimentos da alma na mente, que chegou às línguas modernas pelo verbo sânscrito mányate (ele pensa). Sem essa invenção, que permite a troca de bens de natureza e valores diferentes, não teria havido a civilização que conhecemos.

A construção das sociedades e sua organização em estados se fizeram sobre essa convenção, que se funda estritamente na boa fé de todos que dela se servem. Os estados, sempre foram os principais emissores de moeda. A moeda, em si mesma, é neutra, mas, desde que surgiu, passou a ser também servidora dos maiores vícios humanos. Com a moeda, vale repetir o lugar comum, cresceram a cobiça, a luxúria, a avareza – e os banqueiros.

A moeda, ou os valores monetários, mal ou bem, estavam sob o controle dos Estados emitentes, que se responsabilizavam pelo seu valor de face, mediante metais nobres ou estoques de grãos. Nos tempos modernos, no entanto, a sua garantia é apenas virtual. Os convênios internacionais se amarram a um pacto já desfeito, o Acordo de Bretton Woods, de 1944. A ruptura do contrato foi ato unilateral dos Estados Unidos, sob a presidência Nixon, ao negar a conversibilidade em ouro do dólar, moeda de referência internacional pelo Acordo.

Essa decisão marca o surgimento de uma nova era, em que o valor da moeda não se relaciona com nada de sólido. Os bancos, ao administrá-la, deveriam conduzir-se de forma a merecer a confiança absoluta dos depositantes e dos acionistas, e assegurar essa mesma confiabilidade às suas operações de crédito. O papel social dos bancos é o de afastar os usurários e agiotas do mercado do dinheiro. Mas não é desta forma que têm agido, sobretudo nestes nossos tempos de desmantelamento dos estados.Hoje, não há diferença entre um Shylock shakespereano e qualquer dirigente dos grandes bancos.

Na Inglaterra, o escândalo do Barclays, que se confessou o primeiro banco responsável pela manipulação da taxa Libor, provocou o espanto da opinião pública, mas não dos meios financeiros que não só conheciam o deslize, como dele se beneficiavam.

Segundo noticiou ontem El Pais, os dois grandes executivos da Novagalícia, surgida da incorporação de duas instituições oficiais da província galega – a NovaCaixa e a Caixa Galícia – e colocada sob o controle de Madri em setembro do ano passado, pediram desculpas aos seus clientes, por ter a instituição agido mal. Entre outros de seus malfeitos, esteve o de enganar pequenos investidores mal informados, entre eles alguns analfabetos, com aplicações de alto risco, ou seja, ancoradas em débitos podres, as famosas subprimes, adquiridas dos bancos maiores que operam no mercado imobiliário do mundo inteiro.

Além disso, os antigos responsáveis por esses desvios, deixaram seus cargos percebendo indenizações altíssimas. E os novos administradores tiveram sua remuneração reduzida, por serem as antigas absolutamente irracionais. Com todas essas desculpas, a Novagalícia quer uma injeção de seis bilhões de euros, a fim de regularizar a sua situação.

Este jornal reproduziu, ontem, artigo de The Economist, a propósito da manipulação da taxa Libor, por parte do Barclays, e disse, com a autoridade de uma revista que sempre esteve associada à City, que não há mais confiança nos maiores bancos, do mundo, como o Citigroup, o J.P.Morgan, a União de Bancos Suíços, o Deutschebank e o HSBC. Executivos desses bancos, de Wall Street a Tóquio, estão envolvidos na grande manipulação sobre uma movimentação financeira total de 800 trilhões de dólares.

Para entender a extensão da falcatrua, o PIB mundial do ano passado foi calculado em cerca de 70 trilhões de dólares, menos de dez por cento do dinheiro que circulou escorado na taxa manipulada pelos grandes bancos. A Libor, sendo a taxa usada nas operações interbancárias, serve de referência para todas as operações do mercado financeiro.

O mundo se tornou propriedade dos banqueiros. Os trabalhadores produzem para os banqueiros, que controlam os governos. E quando, no desvario de sua carência de ética, e falta de inteligência, os bancos investem na ganância dos derivativos e outras operações de saqueio, são os que trabalham, como empregados ou empreendedores honrados, que pagam. É assim que estão pagando os povos da Grécia, da Espanha, de Portugal, da Grã Bretanha, e do mundo inteiro, mediante o arrocho e o corte das despesas sociais, pelos governos vassalos, alem do desemprego, dos despejos inesperados, das doenças e do desespero, a fim de que os bancos e os banqueiros se safem.

Se os governantes do mundo inteiro fossem realmente honrados, seria a hora de decidirem, sumariamente, pela estatização dos bancos e o indiciamento dos principais executivos da banca mundial. Eles são os grandes terroristas de nosso tempo. É de se esperar que venham a conhecer a cadeia, como a está conhecendo Bernard Madoff. Entre o criador do índice Nasdaq e os dirigentes do Goldman Sachs e seus pares, não há qualquer diferença moral.

Os terroristas comuns matam dezenas ou centenas de cada vez. Os banqueiros são responsáveis pela morte de milhões de seres humanos, todos os anos, sem correr qualquer risco pessoal. E ainda recebem bônus milionários.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Surpresa no Paraguai: é possível reverter o golpe

Há resistência social no país e isolamento internacional dos golpistas. Aos poucos, desvenda-se trama que levou à quebra da legalidade

Por Antonio Martins

Nas primeiras horas de domingo, o presidente eleito pelos paraguaios, Fernando Lugo, abandonou a postura de resignação que mantinha desde sexta-feira, quando deposto, e tomou uma atitude que pode mudar o futuro imediato do país. Lugo dirigiu-se à rua Alberdi, no centro de Assunção, onde centenas de manifestantes haviam ocupado a TV Pública, em protesto contra ameaças de censura. Dirigiu-se a eles e à imprensa internacional sem meias palavras: “Sem dúvidas, foi um golpe. Um golpe parlamentar contra a cidadania e a democracia, e isso precisa ser denunciado aos quatro ventos”.

Precedida de intensa movimentação social e diplomática, a fala desfez a aparência de “normalidade” com que contavam os golpistas e seus apoiadores locais e externos – Estados Unidos e Vaticano, em especial. Está gerando uma reação em cadeia de resistências sociais e diplomáticas cujos lances mais recentes são a exclusão do “presidente” golpista do Mercosul e da Unasul (domingo à tarde) e a formação de um governo paralelo liderado por Lugo (esta manhã, em Assunção). Caso se mantenha, este processo pode reverter o golpe de Estado e colocar em novo patamar o que alguns chamam de “nova independência” sul-americana. Os fatos decisivos estão se produzindo neste início de semana: aos poucos, torna-se possível desvendá-los e romper a cortina de silêncio que os jornais comerciais brasileiros insistem em manter sobre o episódio.

A resistência avança explorando o calcanhar-de-aquiles dos golpistas: “como careciam de causas racionais que justificassem uma medida tão extrema, optaram por praticá-la com máxima pressa, explica, no jornal paraguaio Última Hora o analista político Alfredo Boccia. Ele prossegue: “O libelo acusatório causa vergonha alheia, de tão ridículo: não cuidaram das mínimas formalidades legais e atropelaram o respeito aos prazos de defesa”.
Lugo estava no Brasil, participando da Rio+20, quando a Câmara dos Deputados abriu, na quinta-feira, o “processo” que levaria a sua “cassação”. Washington Uranga, colunista do Página 12 argentino, conta: os opositores aproveitaram-se da ausência para concretizar finalmente uma ameaça que fizeram “em 23 ocasiões anteriores, pelos mais diversos motivos”. E mais: “a maioria destas manobras foi facilitada pelo próprio vice-presidente Federico Franco. (…) Sabendo que contava com os votos próprios [do Partido Liberal] mais os do Partido Colorado, em várias ocasiões o vice foi até a sede do governo para ameaçar Lugo e tentar extorqui-lo com a ameaça de juízo político, apenas para obter benefícios econômicos para si mesmo…”

Vinte e quatro horas depois, o Legislativo, que sempre bloqueou todas as iniciativas apresentadas por Lugo (da reforma agrária à nomeação de embaixadores), decretava seu impeachment por ampla maioria (39 x 4). A flagrante ilegalidade da aventura foi destacada pelo chanceler argentino Héctor Timerman, em entrevista ao Página 12: “Praticaram uma execução sumária. Darem duas horas de defesa a um presidente democraticamente eleito – um tempo menor que o se concede a quem recorre de uma multa por avançar um sinal vermelho”.

Mas quem dava respaldo aos aventureiros? “É muito provável que o pequeno Paraguai se dispusesse a confrontar as regras do Mercosul e da Unasul, entrando em conflito com seus dois vizinhos, se não contasse com o estímulo e proteção do governo norteamericano”, sugere o economista Flávio Lyra, num texto que Outras Palavras publica hoje. Na mesma entrevista ao Página 12, um relato do chanceler argentino confirma esta impressão. Timerman estava em Assunção nas horas que antecederam o golpe. Havia voado para lá com uma delegação de colegas da Unasul, alarmados pela perspectiva de deposição do presidente eleito. Reporta, em detalhes, as insistentes tentativas de diálogo dirigidas pelos diplomatas à oposição paraguaia – e a soberba com que foram rechaçadas. Eis um dos trechos: “Às 11h45 [de sexta-feira], faltavam 15 minutos para o começo do julgamento. Disse-lhes: ‘Senhores, virão épocas muito duras para o Paraguai, porque nós teremos de aplicar a cláusula democrática’. Não pareceu comovê-los em nada”. 

No final da tarde de sexta, Lugo estava deposto. Quase sincronicamente, em Washington, o porta-voz do Departamento de Estado para a América Latina, Darla Jordan, emitia nota que se calava diante do ataque à democracia, mas pedia “calma e responsabilidade” aos paraguaios… Ao contrário do que se informou no sábado, porém, a Casa Branca ainda não reconheceu oficialmente o novo “governo” paraguaio. Já o Vaticano e os bispos – que exercem forte influência, num país católico e conservador – foram menos sutis. Na quinta-feira, uma comitiva episcopal tentou, sem sucesso, convencer Lugo a renunciar. No domingo, o núncio apostólico Eliseo Ariotti, representante oficial do Papa no Paraguai, afirmou, a respeito da deposição do presidente: “alegra-me muito que o povo simples e todas as autoridades tenham pensado no bem do país”. Como se o grotesco da declaração fosse pouco, anunciou que celebraria uma missa na catedral “pela paz”. Na cerimônia, ofereceu pessoalmente a comunhão ao golpista (foto).


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A primeira atitude de Lugo, após a deposição, foi conformar-se. Débil no Parlamento desde o início de seu governo, o presidente também viveu, ao longo do mandato, uma série de desencontros com os movimentos sociais. Houve erros de parte a parte, consideram Emir Sader  (em Carta Maior) e Santiago O’Donnel (em Página 12): o presidente não cumpriu a maior parte de seu programa; os movimentos não compreenderam que, sem apoiá-lo, ele não teria força para executar as reformas propostas. 

Por paradoxo, talvez o golpe tenha produzido uma aproximação necessária. A partir da noite de sábado, a TV Pública, criada por Lugo em 2011, converteu-se num centro da resistência popular. Centenas de manifestantes acorreram à rua Alberdi, assim que surgiram sinais de que o governo ilegítimo pretendia censurá-la. O Página 12 narra: naquela mesma noite, grupos de jovens construíram duas barricadas nas ruas de acesso. O cineasta Marcelo Martinessi, diretor nomeado pelo presidente eleito, alegrou-se: “as pessoas estão tomando este projeto como seu”. Um microfone foi estendido aos manifestantes: a resistência já tinha um canal para ir ao ar. 


Na manhã de domingo, Lugo compareceria ao local, para sua fala emblemática. Horas depois, os ativistas já eram milhares. Foram eles que rapidamente restabeleceram, à tarde, o fornecimento de energia e recolocaram a emissora no ar, depois de um corte executado pela agência nacional de eletricidade.

Os fatos vêm se acelerando desde então. Formou-se  uma Frente pela Defesa da Democracia no Paraguai. Mais tarde, ainda no domingo, Lugo deu novo passo e anunciou a formação de um governo paralelo, composto por seus ministros e com primeira reunião marcada para esta manhã. A edição desta manhã de Pagina 12 estampa uma entrevista  em que confirma “já começamos a resistência pacífica. (…) Já surgem manifestações de cidadãs e cidadãos. (…) O repúdio [ao golpe] crescerá”. O jornal confirma: estão programadas para hoje manifestações diante dos edifícios públicos e interrupção do trânsito em avenidas estradas.

Ao contrário do que ocorreu em tantos precedentes históricos, os governos da América do Sul parecem dispostos a reagir ao golpe. O envio de uma delegação de chanceleres a Assunção pode ser mais que um gesto simbólico. Ainda no sábado, convocou-se uma reunião de emergência do Mercosul, em Córdoba (Argentina), a partir da próxima quinta-feira. No domingo, anunciou-se que Fernando Lugo – e não o governo instituído por golpe – será recebido como representante do Paraguai. Num primeiro sinal de vacilação, Federico Franco, o presidente instituído pelo golpe, anunciou que pediria ao homem que depôs para “atenuar as tensões desencadeadas na América Latina”. Foi, evidentemente, rechaçado por Lugo.

Desde sexta-feira, os países da América do Sul estão retirando seus embaixadores de Assunção, em protesto contra o golpe de Estado. Há dois anos, na resistência ao golpe de Estado praticado em Honduras, o Brasil jogou papel destacado. Desta vez, a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, parece ter assumido este papel. Foi ela quem tomou a iniciativa, ainda na sexta-feira, de retirar seu embaixador de Assunção, “até o restabelecimento da ordem democrática”. Nos dias seguintes, o gesto seria seguido por Bolívia, Brasil, Equador, Uruguai e Venezuela. Nas últimas horas, aderiram ao movimento Colômbia e México, o que parece indicar uma tendência isolamento dos Estados Unidos. A própria Organização dos Estados Americanos, em outras épocas dominada por Washington está agora questionando a legitimidade da deposição de Lugo.

* * *
Ninguém é capaz de dizer, a esta altura, qual será o desfecho dos acontecimentos. Mas é evidente que uma sequência tão impressionante de fatos novos, cheia de surpresas, num país vizinho ao Brasil, seria um tema jornalístico de relevância máxima. A mídia brasileira, porém, trata-o de forma modorrenta e burocrática. Na maior parte das publicações, o Paraguai esteve nas manchetes apenas quando Lugo foi afastado. Ao contrário da imprensa argentina, nenhuma publicação ousou usar a palavra golpe.

No momento em que este texto é concluído, a manchete  da Folha de S.Paulo, em sua edição online, destaca as declarações do “chanceler” (do governo golpista paraguaio, que se queixa de ter sido afastado “sem defesa” da reunião do Mercosul… Por sugestiva coincidência,O Globo e Estado de S.Paulo, embora menos discretos, ocultam a série de reviravoltas em Assunção para destacar o mesmo personagem… Já o UOL, também do grupo Folha, enviou por algum motivo o repórter Guilherme Balza à capital paraguaia – mas tem relegado a segundo plano as ótimas matérias produzidas por ele (como este vídeo)…

O rápido surgimento de um movimento de resistência no Paraguai – e em especial o fato emblemático de ele ter por centro a TV Pública – revelam: talvez, também no Paraguai, a sociedade já seja capaz de superar as velhas formas de controle da informação e seus laços com os antigos donos do poder…


Matéria originalmente publicada no site Outras Palavras

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Uma pequena grande lutadora belga, agora sergipana


No dia de hoje, na Assembleia Legislativa de Sergipe, uma figura aparentemente muito frágil, de estatura pequenina, mas de um grande coração e personalidade marcante, vai estar recebendo o título de cidadã sergipana. Trata-se da belga Mathilda Antoniette Christine Hendriex, mais conhecida – principalmente na bela, mas paupérrima região do baixo São Francisco – como Irmã Francisca. Uma justa e importante iniciativa da deputada estadual Professora Ana Lúcia, do PT. Já era tempo.

Conheci essa brava e extraordinária lutadora social em 2007, quando tive a oportunidade de escrever sobre a sua vida para um jornal do mandato do então deputado federal Iran Barbosa, do PT. Liguei pra ela, conversamos por telefone, marcamos a ida à Pacatuba para a entrevista. Ela sem me conhecer, e eu louco para conhecê-la, pelo tanto que já tinha ouvido falar desta belga, que desde 68 largou a família e o conforto do seu país para vir pra Sergipe, evangelizar e também lutar pelos mais pobres e por reforma agrária neste estado de coronéis a dar de bala nos mais ousados.

Por muitos motivos, guardo aquela viagem como ‘muito especial’ pra mim, tanto na ida como na volta. Cheguei em Pacatuba no começo da tarde, e foi muito fácil achar a casa da Irmã Francisca. À primeira pessoa a quem perguntei pela missionária na praça principal da cidade já indicou o caminho. Todos ao seu redor também ajudaram a apontar o local.

Chegando lá, foi com muita alegria que a irmã e outras missionárias me receberam. Casinha simples, mas muito gostosa e aconchegante, jardim florido, alegria e paz no ar. E então passei a conversar por mais de uma hora com a belga de Wilderen. Ao longo da entrevista, descobri a força e a determinação daquela pequena senhora, que dedicou e arriscou a sua vida em prol de pessoas que muitas vezes nem conhecia, mas resistia junto com elas, no ensinamento e na luta, pregando a correta mensagem de que “terra é direito de todos”.

Entre muitas disputas com fazendeiros e jagunços, expulsões de ocupações e acampamentos, e conquistas de terras em favor dos camponeses, a belga que agora se torna sergipana deixa muitas e valiosas lições, entre as quais, que nunca se deve desistir da luta, e que a consciência de classe e de direitos por parte dos trabalhadores, seja da cidade ou do campo, é fundamental no enfrentamento às oligarquias e às elites dominantes, que querem tudo pra si, deixando as migalhas para o resto do povo.

Reproduzo abaixo a entrevista feita há cinco anos, porque também descobri que é um dos poucos registros na nossa imprensa da vida desta pequena grande missionária. Infelizmente, no meio da nossa miopia social, perdem-se os registros históricos de personalidades fundamentais na construção de nossa sociedade e nas lutas camponesas e dos trabalhadores. Irmã Francisca é uma dessas figuras emblemáticas. Fico feliz em ter tido a sorte e a oportunidade de escrever um breve perfil da sua vida aqui em Sergipe. Pena ter sido para um jornal tablóide, ou seja, com espaço curtinho para uma história tão rica e bela.

No registro, descobri um pequeno lapso de tempo numa fala da Irmã, quando ela diz que já tinha 42 anos em Sergipe. O ano era 2007, e se ela chegou por aqui em 1968, tinha 39 anos em solo sergipano. Mas manterei o texto conforme foi construído. É coisa pequena, diante de tão grandioso exemplo de vida.

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Irmã Francisca: “Não me canso de lutar”

Se alguém passar pelo Baixo São Francisco e procurar saber quem é Mathilda Antoniette Christine Hendriex, dificilmente obterá resposta. Mas pergunte quem é Irmã Francisca e, de imediato, todos indicarão onde mora uma senhora de estatura mediana, corpo franzino, sorriso largo e acolhedor, sotaque estrangeiro, mas já ‘temperado’ à brasileira. Esta belga de 77 anos, nascida na pequena cidade flamenga de Wilderen, na província de Namur, norte da Bélgica, veio para o Brasil em 68, como missionária-educadora.

Ela e mais três missionários belgas aterrissaram em terras brasileiras num momento conturbado da vida política do país. O ano era 1968, em pleno recrudescimento do Regime Militar com o Ato Institucional nº 5. Foram direto para Japaratuba, atendendo ao chamado do bispo da diocese de Propriá, Dom José Brandão de Castro, para se juntar a outros belgas que aqui já estavam, entre eles Gérard Lothaire Jules Olivier, ou Padre Geraldo, ex-prefeito de Japaratuba. “Eu ia evangelizar na África. Mas nos pediram para vir para o Brasil, através do Dom Brandão, então eu vim”, recorda.

O nome, Francisca, vem da veneração por São Francisco de Assis e seus ensinamentos. Sua vida no Brasil e a força para lutar pelas causas do povo e por reforma agrária também tiveram a inspiração em nomes como Dom José Brandão, Pedro Casaldáliga, Frei Beto e Leonardo Boff.

Nada foi obstáculo para Irmã Francisca. Problemas com a alimentação, o clima, e o idioma – o curso de português feito em nove meses, ainda na Bélgica, não ajudou muito no início. “A minha raiz flamenga só ajudou mesmo na pronúncia. Mas o português mesmo foi muito difícil. Só melhorei com o tempo”, conta.

LUTA PELA TERRA

Francisca lembra que, como educadora, teve algumas dificuldades de entrar no meio do povo, por sua cor e pela dificuldade no idioma. Ela, as outras duas irmãs e Padre Nestor, o outro missionário do grupo, seguiram os passos do padre Gerard, que já pregava a reforma agrária na região de São José, em Japaratuba. “Trabalhamos juntos e ali crescemos muito”.

Já entre 1973 e 1974, o grupo de Francisca, a Congregação Irmãs da Caridade, deixou a cidade de Japaratuba e foi trabalhar com os posseiros. “Fomos para Canhoba, reduto de fazendeiros e com muitos problemas de conflitos por terra. Fomos trabalhar na roça, evangelizar e conscientizar aquela gente de que a terra era direito de todos. Claro, tivemos problemas”, diz.

Com o tempo, aquilo foi incomodando os fazendeiros e criando tensão. Dom José Brandão de Castro, então bispo de Propriá, apoiava o grupo, mas a tensão só aumentou, até explodir. “De uma hora pra outra, tivemos que fugir para Propriá no meio da noite pra não morrer, deixando tudo para trás”, relata a missionária.

Depois de Canhoba, o grupo ‘perambulou’ por quase cinco anos entre Betume, Ilha das Flores e Brejo Grande, agora ao lado também do Frei Enoque. “Vivíamos mais dentro de um Jeep que em casa. Como a gente mexia não só com o religioso, mas com o social também, mais uma vez tivemos problemas, desta vez em Ilha das Flores. Acabamos novamente expulsos por fazendeiros e gente ligada à própria Igreja. Saímos com pedras atiradas às costas”, relata.

Sem nunca desistir, no início dos anos 80 seguiram para nova frente, agora em Pacatuba, na área da Fazenda Santana dos Frades, onde posseiros viviam à míngua, sendo constantemente ameaçados por fazendeiros e seus jagunços. Até se conscientizarem e passarem a lutar pela terra na qual viviam.

“Foi uma luta muito grande ao lado daquele povo. Foi ali que Dom Brandão se engajou mesmo na luta pela terra. Ele foi evoluindo ali, junto com a gente, compreendendo a urgência de lutar pela sobrevivência daquele povo. Ficamos três anos, até que conseguimos a posse da área graças ao apoio de muitas entidades e de muita gente de fora. Depois, não deixamos mais Pacatuba”.

Depois da conquista de Santana, outra grande luta de Irmã Francisca: a conquista da Lagoa Nova. Foram 16 anos de muita luta, conflitos e enfrentamentos, até quando saiu a imissão de posse da área em favor dos posseiros. “Confesso que houve momentos em que eu pensei em desistir. Foi muito sofrimento. Mas a amizade pelo povo falou mais forte. E valeu a pena. Foi uma grande vitória”.

BALANÇO DE VIDA

Olhando o que ficou para trás ao longo de 42 anos, Irmã Francisca sorri e, sem pestanejar, avalia: “A gente veio pra cá sem saber muito bem o que iria viver. Outro continente, outro país, outra cultura, enfim; mas para mim foi muito válido. Só posso dizer que valeu a pena. Se tivesse que fazer tudo outra vez, faria”.

Para ela, só uma ampla reforma agrária resolveria grande parte dos problemas do Brasil. “Não tem como empregar o povo senão dando terra para as famílias trabalharem. Reforma agrária é vital para o Brasil”, defende a missionária. “Ter a ajuda política é imprescindível. A politização do povo também é muito importante, porque ainda tem muita luta pela frente”, avalia.

Sobre a dicotomia das nacionalidades, Irmã Francisca responde com franqueza: “Com 42 anos aqui, não há mais retorno. Sinto-me muito mais brasileira que belga, e o povo daqui me adotou. Tenho laços familiares na Bélgica, mas aqui é a minha vida”, revela a lutadora do povo, que sempre espera por novos desafios. Ela finaliza com uma frase que resume todo o seu estilo de viver, mesmo depois de quatro décadas passando por cima da incompreensão e do atraso em terras sergipanas: “Não me canso de lutar. Nunca”.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Que venham as vadias!

Aracaju que se prepare! Os pudicos, conservadores e machistas que abram as suas mentes! Elas estão chegando, com toda a sua força, coragem, despudor e audácia. São as vadias, que em marcha invadirão nesta sexta-feira, 1º de junho, as ruas da capital das araras e cajus, sem medo de serem felizes, para nos provocar, instigar a nossa sociedade provinciana a refletir melhor sobre a condição das mulheres nesta terra de ‘cabras da peste’ e Lampiões, mas também de muitas Marias Bonitas, Marias Thetis Nunes, Marias Ritas Soares, Ofenísias Freires, Ítalas Silvas, Quintinas Diniz... Todas grandes mulheres, libertárias e revolucionárias em seu tempo.

Que venham as vadias! E tragam consigo um sopro de liberdade – e de libertinagem, por que não? – a este nosso mundinho de machões mandões e de mulheres ainda subservientes e que se prostram anódinas, muitas não por assim o serem, mas por assim as quererem, por jogarem sobre suas costas toda uma carga social preconceituosa desde a tenra infância, de que a ‘boa mulher’ é a submissa, ao homem e aos dogmas religiosos e sociais, o que aniquila o espírito rebelde e revolucionário de qualquer alma feminina.

Não, o papel da mulher não é o da submissão ou da subserviência, ao homem ou ao sistema. Tampouco se pode exigir delas o conformismo e a alienação diante desse mundo de Barbies plastificadas, de mulheres-objeto, comercializadas pela mídia todos os dias em doses cavalares, lobotomizando a sociedade e empurrando cérebro adentro das massas a ideia de que mulheres são para uso e reuso dos homens, e para isso, precisam estar sempre ‘prontas’, belas e cheirosas, e mancinhas, claro.

A hora é de libertação. É por isso que essas bravas vadias vêm varrendo o mundo e o país de Norte a Sul, Leste a o Oeste, feito tsunamis de Leilas Dinis, buscando a construção de uma sociedade livre da perniciosa opressão de gênero, que já não pode ter mais lugar numa sociedade que trafega pelo Século XXI.

E em se tratando das peculiaridades de nossa região, tão associada à visão do cabra-macho, é salutar a invasão dessas rebeldes vadias, para dar uma sacudida e tirar a poeira e o bolor daqueles que ainda pensam como se vivessem nos tempos do Santo Ofício ou na Era Vitoriana.

Não deixa de ser positivamente simbólico que a I Marcha das Vadias de Aracaju tenha início justamente na Praça da Catedral Metropolitana. Afinal, não há instituição mais castradora do espírito libertário das mulheres que a ‘santa’ Igreja.

Só pra lembrar, foi para agradar a Igreja que a presidente Dilma Rousseff aprovou a Medida Provisória 557, no final do ano passado. Esta MP instituiu o Cadastro Nacional de Gestantes, uma ideia interessante, mas no escopo da ‘boa intenção’ de enfrentar o problema da mortalidade materna e do nascituro, há escamoteado um caráter de vigilância e de controle do Estado sobre a vida reprodutiva e sobre o corpo e o livre arbítrio das mulheres. Tudo o que a Igreja mais deseja e apoia.

São estas e outras bandeiras importantes, como a justa reivindicação por mais creches públicas para as trabalhadoras e estudantes, a equiparação salarial entre os gêneros, estabilidade às gestantes em contrato de experiência e o fim do assédio sexual no trabalho e do racismo que movem essas belas e corajosas vadias.

Que venham, então, e que incendeiem esta província com a chama da liberdade feminina e da igualdade de gênero. Toquem fogo nesta selva de preconceitos e dogmas. Que à marcha somem-se homens cientes de que o tempo é de mudança e de enxergar as mulheres como seres autônomos e independentes, como donas de suas vidas. Elas sabem o que querem e aonde querem chegar. Não cabe a nós obstruir, mas construir esse caminho lado a lado.

Que esta Marcha das Vadias seja a primeira de muitas. Estávamos mesmo precisando de uma sacolejada.

domingo, 27 de maio de 2012

Fim do imposto sindical: questão de coerência

O que tem faltado a todas as centrais sindicais que estão contra a campanha nacional e o plebiscito realizados pela CUT pelo fim do imposto sindical é coerência. Vão a reboque do discurso fácil de que a retirada da contribuição anual sindical compulsória enfraqueceria os sindicatos e “comemoram” a notícia de que essa bandeira cutista  não “agradou suas principais entidades filiadas” no 1º de Maio deste ano, pegando como referência matéria da Folha de S.Paulo, um dos jornais mais “anti-sindical” e “anti-trabalhador” que se possa ter notícia.

A CUT, maior central sindical do Brasil e da América Latina, justamente por coerência com a sua história, seguirá defendendo a liberdade e autonomia do movimento sindical, porque desde sua criação, em 1983, o fim do imposto sindical e da unicidade sindical são duas das suas bandeiras mais importantes de luta. Para nós, CUTistas, o atual modelo de financiamento dos sindicatos, baseado no imposto sindical compulsório, deve ser mudado, para que tenhamos organizações dos trabalhadores mais representativas e fortalecidas, ao contrário do que querem pregar os oportunistas.

É preciso historiar para os trabalhadores que este imposto que tanto as outras centrais defendem é cria de Getúlio Vargas, ainda na década de 40, em pleno Estado Novo, ou seja, durante uma dura ditadura, quando Vargas regulamenta as relações entre trabalhadores e patrões, torna os sindicatos dependentes da tutela estatal e cria, então, o imposto sindical.

É importante lembrar que, em 2008, com o reconhecimento legal implementado no governo Lula, as centrais sindicais passaram a fazer parte da divisão do imposto sindical com 10% do valor total. Do restante, 60% vai para os sindicatos, 15% para as federações e 5% para as confederações. Outros 10% ficam para o governo. Ou seja, é briga por muito dinheiro do trabalhador. Caso isso seja revertido, o valor voltará para o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).

Vale também ressaltar que, em agosto daquele mesmo ano, todas as centrais que hoje se voltam contra a CUT se comprometeram a apoiar o envio de um anteprojeto ao Governo Federal para implementação da contribuição negocial. Mas quatro anos depois, apenas a CUT – que recebe a maior parte do imposto por ser a mais representativa do Brasil – ainda mantém firme a sua posição, por pura questão de coerência com a sua história e com as suas lutas.

As demais centrais preferiram aliar-se à posição defendida pela maioria das entidades patronais (sim, trabalhador, os patrões tem suas entidades para defender  seus interesses, como a poderosa CNI – Confederação Nacional da Indústria, e abocanham também seu imposto sindical, cujo valor sai de uma parcela do capital social das empresas).

Não dá para ignorar que é na carona da arrecadação do imposto sindical que vem crescendo ano a ano o número de sindicatos cartoriais, sem nenhum compromisso com a luta dos trabalhadores, mas tão-somente em abocanhar o seu quinhão da contribuição compulsória, independente de fazer a luta dos trabalhadores ou não.

Por isso defendemos um novo modelo de financiamento das entidades sindicais, baseado nas mensalidades associativas e na contribuição decidida democraticamente pelos trabalhadores em assembléias. Com essa nova realidade, fatalmente aqueles que “vivem”somente do imposto anual do trabalhador terão que fazer luta sindical para serem reconhecidos por suas bases, e não esperar de pernas pro ar o dinheiro do imposto cair nas contas de seus sindicatos e centrais.

É tudo questão de coerência... mas também de coragem e compromisso real com a luta dos trabalhadores.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Operação Navalha: bodas de madeira e impunidade

Há exatos cinco anos, a sociedade sergipana acordava perplexa com os noticiários bombásticos de centenas de policiais federais cumprindo mandados de prisão, busca e apreensão, ocupando apartamentos em edifícios grã-finos e mansões nababescas em Aracaju e também em vários pontos do Brasil. Numa operação quase cinematográfica, todo o Sergipe acompanhou as prisões de figuras importantes do meio político, empresarial e servidores acusados de desvio de verbas públicas.

Era o estouro de mais um grande escândalo nacional, de proporção colossal, à altura do montante saqueado: R$ 178 milhões só em Sergipe. R$ 300 milhões em todo o país, surrupiados pela quadrilha comandada pelo capo de tutti capi Zuleido Soares de Veras, dono da Construtora Gautama, sugadouro dos milhões de reais dos cofres estatais direto para o bolso de uns poucos larápios. E quem é a turma do Zuleido que operou em Sergipe, em especial dentro da Companhia de Saneamento de Sergipe (Deso) e do TCE?

Aqui foram pegos pelas escutas telefônicas da PF e durante as investigações nada menos que 11 figuras ilustres, que respondem ação penal por peculato e/ou prevaricação, mas que até hoje espera para ser julgada pelo Superior Tribunal de Justiça. A casa caiu para o ex-governador do DEM, João Alves Filho; seu filho e diretor-presidente da construtora Habitacional, João Alves Neto; Flávio Conceição de Oliveira Neto (chefe da Casa Civil no governo João Alves, conselheiro afastado do TCE e braço direito de Zuleido nas operações em Sergipe); o ex-deputado federal pelo PPS, Ivan Paixão; o ex-presidente da Deso no governo João, Victor Mandarino; o ex-secretário da Fazenda no governo João, Gilmar de Melo Mendes; o tesoureiro da campanha de João Alves em 2006, Max Andrade; Roberto Leite e Kleber Curvelo Fontes (ex-diretores da Deso), Sérgio Duarte Leite e Renato Conde Garcia (prestavam serviços à Deso).

Mas apagados os holofotes da mídia, habeas corpus pra todo lado livrando a gatunada de ver o sol nascer quadrado, e o tempo se encarregou de mais uma vez favorecer a turma do colarinho branco, para quem as cadeias são meras figuras de filme de Sessão da Tarde.

E o caso foi perdendo interesse da população. E da Justiça também. Cinco anos depois e nada. Fosse num casamento, seriam Bodas de Madeira, motivo para bolo, champanhe e festa. Mas não se comemora pilantragem. No conjunto da população honesta, fica apenas a amarga sensação da impunidade que campeia por essas terras, beneficiando os grandes tubarões que estraçalham e consomem com voracidade as carnes e entranhas dessa vaca de fartas tetas chamada erário público.

E ficamos a ver navios como aqueles que zarpavam há quinhentos anos, cheios de fétidos saqueadores europeus e arrobas e mais arrobas das riquezas roubadas desse fértil chão e dessa gente brasileira, tão dócil e tão servil, para não dizer tola.

E temos que engolir seco a arrogância dessa gente espúria, que no fim das contas ainda volta às páginas das nauseabundas colunas sociais, mesmo depois de terem estampado as páginas policiais com seus crimes vis.

E ainda há os que descaradamente (ou seria desesperadamente?) buscam a política (ou retornam a ela) mesmo depois desses escândalos, por duas boas razões: ganhar foro privilegiado e abrir oportunidades para novas rapinagens. Dupla vitória.

E o que é pior, ainda há muita gente por aí, cego por sua própria ignorância e falta de memória, que engole fácil a torpeza dessa gente, ignoram seus golpes e saques sistemáticos ao dinheiro público, dando-lhes os votos que lá na frente serão garantia pra novos golpes e novos saques.

“Rouba mas faz!”, justifica um sacripanta. “Ele deu emprego pros meus filhos”, arrota outro descerebrado. E é graças a esses que essa gente se perpetua e perpetua seus crimes. Ao fim, a sociedade toda é quem fica com o saldo negativo dessa conta.

É na ignorância de uns, no silêncio e covardia de outros, na omissão da maioria e na lentidão e ineficácia da Justiça que as ratazanas vão se multiplicando e engordando.

Durante esses cinco anos, a CUT de Sergipe e seus sindicatos filiados praticamente estiveram solitários (irritantemente solitários) na luta contra a impunidade relativa à Operação Navalha. A cada aniversário, fizeram manifestações nas ruas cobrando julgamento e cadeia para os envolvidos, martelando o governo Marcelo Déda para que fizesse auditoria na Deso; em frente à Assembleia Legislativa, montaram uma barbearia pra cobrar dos deputados – sem sucesso – que instalassem a CPI da Navalha; distribuíram doce de leite e lavaram de creolina a entrada do Tribunal de Contas do Estado, pra desinfetar a “sujeira” ali presente; fizeram carnavais contra a corrupção, marchas do 1º de Maio contra a rapinagem do dinheiro público, enfim, foram insistentes.

Ainda este ano, a CUT foi mais uma vez a única entidade a estar na frente do TCE, não para fazer festa para a conselheira Isabel Nabuco D’Ávila que se aposentava, mas para lembrar do seu envolvimento com Flávio Conceição e suas falcatruas, tudo devidamente registrado nas conversas telefônicas interceptadas pela PF, onde os conselheiros negociavam sentenças e trocavam propinas em latas de doce de leite, que a doméstica da conselheira descia para pegar.

E nada lhe aconteceu. Foi aposentada com pompa, cobertura animada da imprensa, puxa-saquismos a dar de penca e direito até mesmo à banda marcial da Polícia Militar e saudações especiais do governador do Estado pelos seus relevantes e competentes serviços prestados como conselheira do TCE. Bravo, bravíssimo! Fecham-se as cortinas e o povo é quem tem que rir de si mesmo: é o palhaço do espetáculo!

E Flávio Conceição? Este ainda mama tranquilamente nas tetas do TCE. É conselheiro afastado compulsoriamente, ganhando sem bater um prego seus R$ 25 mil mensais, enquanto nosso “Tribunal de Faz de Conta” figura excentricamente como o único do Brasil a ter oito conselheiros.

Mas cinco anos já se foram, e até entre os bravos cutistas o cansaço já bate. A sensação é de que a pizza já está mais do que assada e pronta pra ser servida com vinho e docinho de leite de sobremesa. Mais uma vez, a gatunagem sairá vitoriosa, e a população é quem sairá perdendo.  

O Superior Tribunal de Justiça, em especial a ministra Eliana Calmon,  responsável pelo caso desde o início, tem em suas mãos, desde o dia 2 de maio último, a ação pronta para ser julgada. Adiou-se então o julgamento, passando para 16/5 (ontem). Não foi julgada. E continuam os adiamentos. Até quando? Esperar mais o quê? Os crimes prescreverem? Até hoje, nem Zuleido, nem nenhum dos envolvidos com ele em Sergipe sofreram qualquer punição.

Seguiremos assim, com a Justiça premiando os grandes saqueadores do dinheiro do povo? E estes continuarão rindo e semeando a perniciosa lição de que roubar (muito) compensa? Há motivos para acreditar que sim. A navalha da Justiça anda cega há tempos...