segunda-feira, 14 de junho de 2010

Copa 2010: Consenso de Roma sobrevive ao de Washington

Em tempos de futebol, Copa do Mundo e anestesia geral das massas, vale uma lida neste genial artigo de Breno Altman, onde ele faz uma cronologia da descambada que o futebol arte deu de 1990 pra cá, atésucumbir a esse futebol sem brilho, do senso-comum,  jogado do mesmo jeito, seja na distante e problemática Coreia do Norte, até mesmo aqui, onde o Zangado-Dunga monta uma seleção que está longe, mas muito longe de representar o futebol que um dia foi aclamado como "arte", o futebol brasileiro. O artigo foi publicado originalmente no sítio Vermelho.org.br. Muito bom!

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Copa 2010: Consenso de Roma sobrevive ao de Washington 

O ano de 1990 foi marcante por vários motivos. A última década do século 20 abria-se com os derradeiros suspiros da URSS e a consolidação da hegemonia dos EUA. O modelo vitorioso, baseado no predomínio do livre-mercado, era oficialmente adotado como receita oficial pelas instituições financeiras. Em homenagem à cidade onde economistas do FMI, do Banco Mundial e do Departamento do Tesouro americano elencaram seus mandamentos, a fórmula acabou batizada como Consenso de Washington.

Por Breno Altman


No universo paralelo do futebol, a Itália abrigava a 14ª Copa do Mundo. Na opinião de muitos analistas, a mais feia e encardida de todas as disputas entre seleções desde 1930. Como se as utopias e os sonhos de uma nova sociedade, fulminados pela derrocada soviética, tivessem seu ocaso transposto, de alguma maneira, também para o império da bola. Mas em um sentido eventualmente inverso: a magia e a arte cediam lugar à tecnocracia e à engenharia.

Com a exceção solitária da esfuziante equipe de Camarões, as demais seleções sucumbiram ao futebol-força praticado pelos europeus, particularmente alemães e italianos. Forjava-se o Consenso de Roma. Bons resultados somente seriam alcançados com estratégias de predomínio defensivo, meio-campo dedicado à marcação, submissão da técnica à tática, velocidade de contra-ataque e substituição do toque e do drible pelos lances aéreos e bolas paradas.

Os argentinos de Maradona e Caniggia, é verdade, resistiram um pouco à ofensiva conservadora. Mas foram apenas uma sombra do selecionado criativo e audaz de 1986. Caíram na final, diante da Alemanha, exibindo um futebol desidratado e sem inspiração. Ao contrário do que ocorrera na copa anterior, quando derrotaram o mesmo adversário em uma partida cheia de emoção e invenção.

O caso mais emblemático de subordinação aos ditames europeus, no entanto, provavelmente tenha sido a seleção brasileira. Pelo papel que representa no imaginário dos estádios, a capitulação do time dirigido por Sebastião Lazaroni expressou momento sublime para a consolidação do futebol-planilha. O Brasil, lendário bastião da liberdade e do espetáculo nos campos da bola, se dobrava à hegemonia de líberos e volantes mesmo às custas da humilhação.

O técnico Lazaroni é um personagem menor, quase insignificante. Mas a ele coube a missão de domesticar o futebol brasileiro depois das derrotas de 1982 e 1986. Não deixa de ser ilustrativo que um treinador irrelevante tenha sido o coveiro da tradição brasileira. Outros vieram depois dele, mais preparados e vitoriosos. O criador da era Dunga, porém, do alto de sua mediocridade, foi quem abriu os portões para a cavalaria tártara do burocratismo ítalo-saxônico.

Essa tarefa somente poderia estar nas mãos de uma figura inexpressiva, que pudesse ser moldada pelos interesses da elite futebolística e seus patrocinadores. O longo tempo sem títulos mundiais atrapalhava os negócios. O estilo reverenciado por Telê Santana passou a ser visto como incompatível com o triunfo e a caixa registradora.

Lazaroni foi parido pelo complexo de inferioridade tão próprio às oligarquias nacionais, inclusive aquelas que mandam no futebol. As derrotas nas duas copas anteriores não podiam ser analisadas, por essa gente e seus áulicos na imprensa, como eventualidades ou acidentes naturais ao esporte. Nada disso: a seleção brasileira tinha perdido porque insistira em ser diferente quando o mundo era cada vez mais homogêneo.

O que veio em seguida é história. O Brasil ganhou e perdeu copas nos marcos desse conservadorismo. Mesmo com alguns jogadores fantásticos, nunca mais voltou a dar espetáculos como na safra do tricampeonato ou nas antológicas derrotas de 1950 e 1982. O medo nos fez escolher sermos iguais aos piores. A vitória de 1994, para tristeza da arte, carimbou essa opção como virtuosa.

Sequer os novatos africanos, a bem da verdade, escaparam dessa força gravitacional que empurra o futebol para o lugar comum. O livre fluxo de atletas e treinadores, determinado pelos recursos financeiros dos clubes europeus, consolidou um pensamento único também no mundo da bola.

Aqui termina, contudo, o paralelo entre os dois consensos. O de Washington, afinal, foi estraçalhado pela crise financeira atual. O de Roma ainda vive em apogeu. Quem sabe alguma seleção terá a coragem de romper com seu primado nos campos da África do Sul. Muito difícil que esse papel seja exercido pelo time de Dunga, o filhote de Lazaroni.

Breno Altman é jornalista e diretor editorial do Opera Mundi (www.operamundi.com.br)

terça-feira, 8 de junho de 2010

Das laranjas às laranjas; do pó ao pó...

Neste dia 8 de junho, comemora-se, quem diria, o Dia do Citricultor. Pensar em safra, problemas na citricultura sergipana - que um dia já foi a segunda maior do país -, investimentos no campo, commodities, enfim, nada disso me vem à cabeça no dia de hoje. O pensamento mais forte que me vem à mente remete ao sofrimento e ao desespero das famílias dos sete catadores de laranja que não voltaram para casa no último dia 31 de maio, quando um caminhão que transportava laranja e 37 catadores amontoados sobre a carga cítrica, caiu ao tentar passar por uma ponte rústica de madeira, no povoado Fonte Nova, entre Boquim e Estância. A ponte, em estado precário, cedeu durante a passagem do pesado veículo. Uma tragédia mais do que anunciada.

Apesar de todo o drama, da cobertura da imprensa, da comoção em Boquim – de onde a maioria dos mortos era – e do sentimentalismo do governador do Estado, Marcelo Déda, que acompanhou o funeral das vítimas e decretou três dias de luto, não percamos de vista que o trágico acidente logo, logo será esquecido, assim como tantos outros ocorridos por estas estradas vicinais do interior de Sergipe, onde centenas e centenas de bóias-frias arriscam suas vidas da mesma forma como os sete que morreram em Boquim: sobre as carrocerias dos caminhões que transportam cargas e homens, homens e cargas. Tudo como se fosse uma coisa só, e como se tivessem o mesmíssimo valor. Nem mais, nem menos. Quanto vale a vida de um bóia-fria? Um salário mínimo e alguns sacos de laranja, para quem contrata e transporta.

Nunca é demais questionar: onde estava a fiscalização da Companhia de Polícia Rodoviária Estadual (CPRV) quando o caminhão, com “passageiros” na carroceria, passou sem ser importunado? A desculpa agora é a de que a estrada é de responsabilidade do município. E tem Companhia de Polícia Rodoviária Municipal? Desconheço. E onde estavam engenheiros e fiscais do Departamento Estadual de Infraestrutura Rodoviária (DER) que não interditaram o tráfego naquela estrada e consertaram a tal ponte de madeira antes que o fato se consumasse? Ou nos acostumamos mesmo a trancar à chave a porta só depois que o ladrão nos rouba?

Tragédias como essa que aconteceu em Boquim não são para serem esquecidas ou minimizadas, mas para servirem como alerta e motivação para se corrigir erros e mudar radicalmente valores e sistemas carcomidos. Mas isso talvez em Pasárgada, sendo todos amigos do rei. Por aqui, o buraco é mais embaixo.   

Porque aqui, todos sabem, e se aceita com inquietante passividade, que são raríssimos os latifúndios onde se oferece transporte adequado, salário mínimo e condições de trabalho salubre aos trabalhadores rurais. Como a safra é sazonal e o trabalhador é volante, não se tem vínculo com quem contrata, tampouco interesse de lhes dar um tratamento humanizado enquanto mão-de-obra camponesa. O serviço beira a quase servidão. Muitos desses trabalhadores labutam de 12 a 14 horas por dia, em condições desumanas.

E como por aqui se repete a lógica do Brasil afora, de concentração de terras crescente e mecanização rural cada vez mais acelerada, cresce também o número de trabalhadores rurais sem ocupação remunerada. Estes não têm terra para plantar, porque a reforma agrária não anda, e por isso, acabam nas mãos de atravessadores, que negociam a sua força de trabalho a qualquer preço e em quaisquer condições.

Quem não aceita, fica sem trabalho, sem condições de subsistência, sem dignidade e acabam engolidos pela pobreza severa. Humilhados, na próxima safra, serão presas fáceis dos contratantes de bóias-frias. Em condições mais do que adversas, sem ter a quem recorrer, são os primeiros a cair nas armadilhas do trabalho escravo ou semi-escravo, ainda comum neste Brasil sem justiça social.

E fica muito claro que tragédias como a registrada em Boquim envolvem não só a questão das péssimas condições de transporte, de salário e de trabalho dos bóias-frias, mas também as estradas por onde eles precisam trafegar, na boléia ou na carroceria de caminhões, sempre em iminente risco de vida. As vicinais, principalmente, grande parte em condições precárias, sempre guardando uma surpresa a cada curva, um susto a cada ponte de madeira na travessia de um rio, até a chuva e a noite trazem maus presságios, quando pegas pelo caminho, o que torna a viagem ainda mais perigosa.

É dura, muito dura a vida de bóia-fria. E, pode-se observar, os sete mortos em Boquim já caíram quase no esquecimento. As investigações, se é que vai haver alguma, chegarão em alguém? Os responsáveis pela contratação e transporte irregular dos bóias-frias serão punidos? Os responsáveis pela fiscalização de transporte irregular de passageiros e pelas pontes em estradas vicinais sofrerão algum processo administrativo com consequências? Ou serão mais sete vidas de trabalhadores rurais assalariados perdidas em vão, numa tragédia que poderia ter sido evitada?

Alguma coisa precisa ser feita. Evitar que mais mortes aconteçam é tarefa do Governo do Estado, dos municípios, do Ministério Público do Trabalho, sindicatos e da sociedade de uma forma geral. Não é possível mais se compactuar com as condições precárias de transporte e trabalho a que são submetidos os nossos bóias-frias, sejam catadores de laranja, cana-de-açúcar ou de qualquer outro produto agrícola, desses que só fazem gerar riqueza e bem estar para uns, miséria e morte para outros.