terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Wikileaks: interesse público acima do interesse de Estado

Nas últimas semanas, temos acompanhado a caçada internacional e desmesurada ao australiano Julian Paul Assange, que de uma hora para outra passou de mero web publisher a “Public Enemy Number One” dos Estados Unidos da América e de praticamente todas as grandes potências ocidentais. Fundador do site sueco Wikileaks, Assange tornou público, entre outros conteúdos de grande relevância, nada mais nada menos que 250 mil telegramas de embaixadores norte-americanos em todo o mundo trocados com Washington nos últimos 10 anos, contendo informações ditas “confidenciais” da ambígua diplomacia americana e que jamais chegariam aos cidadãos comuns não fosse o site em questão, que tem apoio, diga-se de passagem, de jornais de peso como o New York Times, The Guardian, Le Monde, El País e a revista Der Spiegel.

Por tamanha ousadia, de trazer à tona a política – muitas vezes suja – operada pela Casa Branca, CIA e FBI, Assange está pagando um alto preço. Ao colocar, com o seu site, o interesse público acima do interesse de Estado, o australiano abriu a caixa de Pandora e mostrou as verdades ocultas das operações articuladas pelo Departamento de Estado Americano para fazer valer os interesses do imperialismo ianque mundo afora. Sem dúvida, o Wikileaks pôs o rei nu e reveleram a diplomacia de intimidação e espionagem colocadas em prática por Washington.

A ousadia de Assange fez cair, também, a máscara do falso liberalismo made in USA. A democracia estadunidense, tão festejada por sua fervorosa defesa dos princípios da liberdade de expressão e de imprensa, revela, no caso Wikileaks – ou Cablegate, como está sendo chamado – toda a hipocrisia do seu sistema e prova o quanto para os americanos do norte conceitos como liberdades individuais, de expressão e de imprensa são volúveis.

No curso de Jornalismo, aprendemos logo cedo como exemplo de bom jornalismo o praticado pela dupla de repórteres do Washington Post Bob Woodward e Carl Bernstein, que revelaram o famoso escândalo Watergate a partir de informações passadas por uma fonte apenas conhecida pelo codinome Deep Throat, trazendo à tona as ações ilegais do presidente Nixon, que usava o FBI para espionar a oposição. O caso, como se sabe, acabou por derrubar o presidente bisbilhoteiro.

Bob Woodward e Carl Bernstein prestaram um grande serviço àquela nação, agindo contra os interesses do Estado naquele momento. A dupla de repórteres fez jornalismo investigativo, jornalismo “sangue no olho”, de coragem e de enfrentamento a um governo de práticas ilegais. É isso que se espera de uma imprensa livre e comprometida com o seu público.

Pois Julian Assange cumpre com o mesmo papel que Woodward e Bernstein no caso Watergate, independente de quem tenha sido o seu Deep Throat ou da forma como tenha negociado as informações que postou. Usando dessa fenomenal ferramenta de democratização da informação, a internet, fez jornalismo mesmo que em estado bruto, revelando informações ocultadas por interesses corporativos ou de governos e publicando-as para que o leitor-cidadão tire suas próprias conclusões.

Não fossem as revelações do Wikileaks, dificilmente se saberia, por exemplo, da existência de um destacamento militar especial para capturar ou matar insurgentes sem direito a julgamento nas operações militares dos EUA no Afeganistão; ou que o governo Obama está barganhando com outros países a aceitação de detentos libertados da prisão de Guantánamo (o Brasil já se negou a recebê-los).

Relativamente ao nosso país, sem o Wikileaks jamais saberíamos que o ex-embaixador norte-americano no Brasil, Clifford Sobel, criticou pesadamente o Plano Nacional de Defesa, apresentado pelo governo em 2008; ou, para surpresa de muitos, que o candidato derrotado à Presidência da República, José Serra (PSDB), prometeu que tomaria medidas para satisfazer os interesses das petroleiras estadunidenses em relação ao marco exploratório do pré-sal.

Como se vê, são informações que estão longe de serem desinteressantes, e são apenas uma minúscula fração do que o site conseguiu desenterrar. Portanto, Julian Assange presta um grande serviço aos cidadãos de todo o mundo. Condená-lo pelo que o seu site revela é condenar o jornalismo na sua essência, a liberdade de imprensa e o direito das pessoas à informação e à verdade. Trata-se, portanto, de condenar o próprio conceito de democracia como a conhecemos.

Pouco importa se o Wikileaks tem ligações com cartéis da comunicação, se o conteúdo compartilhado é ou não comprometedor para o governo norte-americano e outros, ou se Assange se tornará a Personalidade do Ano da revista Time. Importa-nos muito mais a defesa da liberdade de expressão e de imprensa e a garantia do livre fluxo da informação, e o Wikileaks acaba por reforçar objetivamente essas bandeiras em favor das sociedades livres e do jornalismo de vanguarda.

(Artigo publicado no jornal CINFORM desta semana)

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

A democracia fugiu do controle?

Para quem tem acompanhado a perseguição internacional a Julian Assange por ter desmascarado a política externa norte-americana com o seu fenomenal Wikileaks, segue um bom artigo de Izaias Almada, publicado no site de Carta Maior. Desde já, minha total solidariedade a Assange e apoio ao seu site e à sua equipe. Em breve, estaremos publicando artigo nosso referente ao assunto. Aguarde.
--

A democracia fugiu do controle?


Um curioso artigo do jornalista espanhol Pascual Serrano publicado em “El Periódico de Catalunya” e reproduzido no site www.rebelion.org levanta uma questão interessante provocada pelos milhares de telegramas vazados pelo site Wikileaks na internet, mas que – de algum modo até intrigante – ultrapassa a polêmica criada na imprensa mundial diante do volume e do conteúdo ali exibidos.

Diz Serrano na introdução do seu texto que o fenômeno Wikileaks tem monopolizado numerosas análises e reflexões sobre o futuro da informação, da internet e da própria difusão de notícias. É natural. Como o direito à informação e à liberdade de imprensa se constituem em pilares, entre outros, da democracia tal qual a conhecemos e é praticada em boa parte do mundo ocidental, chama a atenção o fato de que parece se configurar com maior nitidez uma verdade que a hipocrisia de muitos ‘democratas’ procura esconder e maquiar há algum tempo: afinal existem informações e... informações. Como também existem concepções diferentes sobre a liberdade de imprensa.

Quando um país, como os Estados Unidos da América, apóia um golpe de estado contra um governo democraticamente eleito, o último exemplo é a deposição do presidente Manuel Zelaya em Honduras (mas a lista é imensa só nos últimos 50 anos), é justo encobrir ou negar essa informação? Em nome de quê? De quem? E a liberdade de imprensa onde é que fica? Os chamados segredos de estado só pesam em um dos pratos da balança?

Não é por acaso que o pensador e lingüista Noam Chomsky declara, a propósito dos recentes vazamentos no Wikileaks, que os governantes norte americanos tem profundo desprezo pela democracia, essa mesma da qual se orgulham e querem impor ao mundo através da força.

Muito a propósito, vejamos as recentes declarações do atual embaixador dos EUA no Brasil, Thomas Shannon, em artigo escrito para o jornal Folha de São Paulo no dia 2 de dezembro passado: “O presidente Obama e a secretária de Estado Hillary Clinton decidiram dar prioridade à revigoração das relações dos EUA no mundo. Ambos têm trabalhado com afinco para fortalecer as parcerias existentes e construir novas parcerias no enfrentamento de desafios comuns, das mudanças climáticas e da eliminação da ameaça das armas nucleares até a luta contra doenças e contra a pobreza.”

Obedecendo à orientação de Washington para minimizar os telegramas wikis, o blá, blá, blá retórico de Thomas Shannon é vazio de significado prático e recheado de conteúdo cínico. No contexto da América Latina, quais seriam esses desafios, senhor embaixador? O combate ao narcotráfico, por exemplo? Mas qual é o maior país consumidor de drogas pesadas no mundo e, portanto, grande sustentáculo do narcotráfico internacional, segundo relatórios da ONU? Os Estados Unidos da América. Qual o volume de dinheiro do narcotráfico branqueado em bancos norte americanos (e europeus)? Em termos mundiais, já ultrapassa a casa dos 400 bilhões de dólares por ano.

Quanto às mudanças climáticas, é sabido que até a presente data o país do Sr. Shannon ainda não assinou o Protocolo de Kyoto, criado em 1997 com o objetivo de reduzir a produção de gases poluentes, sendo os EUA o país que mais polui o meio ambiente mundial. Dispenso-me de comentar sobre o cinismo da “eliminação da ameaça de armas nucleares”. Repito aqui apenas a velha e surrada pergunta: por quê os EUA não dão o exemplo e começam a destruir o seu próprio arsenal nuclear? Sobre a luta contra a doença e a pobreza, o Sr. Shannon deveria olhar para dentro de seu próprio país e ver os estragos causados no sistema de saúde privatizado, tão bem avaliado pelo cineasta Michael Moore; ou avaliar o atual nível de desemprego e pensar nos imensos guetos de miséria espalhados pelo país, sobretudo entre afros descendentes e hispânicos.

O ainda referido artigo publicado na FSP é uma catilinária de parvoíces, eivada de frases vazias, mas sempre com aquela pontinha de arrogância com a qual os “nossos irmãos do norte” se acostumaram a tratar o mundo. Prestem atenção nessa simples e emblemática frase do embaixador norte americano no Brasil sobre os telegramas do Wikileaks, eivada de arrogância e ‘espírito democrático’: “Uma ação cuja intenção é provocar os poderosos pode, em vez disso, pôr em risco aqueles que não têm poder.” Ou seja: nós, os poderosos (leia-se EUA), se provocados, podemos pôr em risco os que não tem poder (o resto do mundo).

Mas é exatamente isso o que seu país já faz, senhor embaixador, com ou sem o Wikileaks. Como é que ficam os assassinatos de civis no Afeganistão e no Iraque? Quantos idosos, mulheres e crianças já morreram para receber (custa-me mais uma vez engolir o cinismo) a velha e empoeirada democracia de Abraham Lincoln? O que significa enviar dez mil soldados armados até os dentes para uma ajuda humanitária ao Haiti?

Volto agora ao jornalista Pascual Serrano. Sobre o debate entre defensores e críticos para saber se o site de Julian Assange comete uma irresponsabilidade com a e circulação de informação secreta, o jornalista espanhol considera que há uma simplificação do tema e que o modus operandi do próprio Wikileaks vem demonstrando que o assunto é mais complexo.

Serrano, sem mostrar duvidas quanto à veracidade dos tais telegramas, levanta a enigmática hipótese de se saber a razão pela qual, de início, o Wikileaks ofereceu de forma privilegiada e com exclusividade 250.000 documentos a cinco grandes meios de comunicação mundial, The New York Times, The Guardian, Der Spiegel, Le Monde e El País. Tais órgãos de informação divulgaram em seguida que tinham “autonomia para decidir sobre a seleção, valoração e publicação das informações que afetassem a seus países (EUA, Grã Bretanha, Alemanha, França e Espanha).

Portanto, e ainda segundo Serrano, a conivência entre o Wikileaks e o cartel criado entre esses cinco órgãos de comunicação, é absoluta. E conclui: “Não sei se a origem do site Wikileaks era limpa e honesta. O que parece claro, contudo, é que está se convertendo num objeto domesticado, a ponto de o primeiro ministro de Israel Benjamim Netanyahu afirmar que os documentos dão razão ao seu governo ao valorizar a ameaça iraniana”.

Os vazamentos Wikileaks significariam o simples desnudamento da diplomacia de intimidação e espionagem colocadas em prática por Washington, tornando explícito para o mundo aquilo que muitos já sabiam ou desconfiavam? Criam constrangimentos para o complexo industrial/militar e as grandes corporações capitalistas ou, ao contrário, significam uma nova e sofisticadíssima forma de contra-informação digna de um filme de Hollywood?

O atual líder republicano no senado norte americano, Mitch McConnell, declarou em entrevista para a rede de televisão NBC que Assange é “um terrorista de alta tecnologia”. O dano causado aos EUA é enorme e, segundo o senador, Assange deve ser julgado com todo o peso da lei. Se por acaso isso causar problemas legais, “muda-se a lei”, completou McConnell. Parece que desde a eleição de Bush filho, quando se fraudou a lei no estado da Flórida para sua eleição, ou mesmo bem antes, quando John Kennedy foi assassinado, a democracia norte americana vem mudando algumas de suas leis a fim de se manter como sendo a democracia exemplar para o resto do mundo.

Ainda é cedo para maiores projeções nessa ou naquela direção sobre os telegramas wikis ou sobre o papel representado por Julian Assange. Uma coisa é certa. A pergunta que se configura aos poucos e que o confronto entre a força avassaladora da nova informação eletrônica e a da velha mídia mundial a serviço do poder hegemônico do capitalismo nos coloca é a seguinte: a democracia representativa burguesa está fugindo ao controle de quem a tutela?

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Crise econômica global, guerra econômica e gasto militar

Excepcional artigo do economista cubano Osvaldo Martinez. Essencial para entendermos o que está em jogo, neste momento, no tabuleiro nas nações e o que pode vir pela frente, a curto prazo: uma guerra militar global, puxada pelos Estados Unidos, na tentativa de salvar a sua decadente economia do colapso. Mas uma guerra global nas condições militares atuais significa uma guerra nuclear; portanto, sobrará quem e para usufruir do quê???

--


CRISE ECONÔMICA GLOBAL, GUERRA ECONÔMICA E GASTO MILITAR


A estrutura do orçamento dos Estados Unidos e a lógica de sua política econômica, com Bush e Obama, é a de uma economia de guerra na qual o gasto militar exacerba o déficit fiscal, mas permite o funcionamento de um “equilíbrio do terror financeiro”, repassa imensos lucros ao complexo militar industrial e mantém uma chantagem global baseada na força militar.

Por Osvaldo Martinez*


Uma simples olhada no orçamento de 2010 dos Estados Unidos permite examinar a magnitude do gasto militar e o papel que este joga em conjunto com o gasto para os pacotes de resgate dos bancos e entidades financeiras quebradas. O montante do orçamento é de 3,94 trilhões de dólares e o déficit previsto é de 1,75 trilhão, equivalente a quase 12% do PIB. (1)

O gasto militar oficial é de 739,5 bilhões de dólares, embora se forem incluídos outros gastos indiretos ou encobertos, o gasto superaria 1 trilhão de dólares. O gasto no resgate das entidades financeiras falidas na crise, efetuado pelas administrações de Bush e Obama alcança 1,45 trilhão, enquanto que os juros devidos pela dívida pública são de 164 bilhões de dólares.

Isto significa que quase toda a receita do orçamento (2,38 trilhões) se consome somente pelo gasto militar mais os resgates da oligarquia financeira e uma pequena proporção por juros da dívida pública. Não fica praticamente nada para outros tipos de gastos.

Se considerarmos que o gasto militar ronda o trilhão de dólares e que a parte da receita orçamentária correspondente aos impostos familiares é de 1,06 trilhão, temos que quase todos os impostos pagos pelas famílias nos Estados Unidos mal dão para cobrir o enorme gasto militar.

Os Estados Unidos são o país mais endividado do mundo, embora o significado prático disto seja diferente para este país que para qualquer outro, porque se encontra endividado na moeda nacional que ele mesmo cria e faz circular.

O financiamento da enorme dívida pública federal ascendente a 14 trilhões de dólares, sem incluir dívidas dos estados e municípios é de características surrealistas.

Para o crescimento dessa dívida pública contribuíram os pacotes de resgate aos bancos, mas essa dívida é financiada por uma retorcida operação mediante a qual o governo financia seu próprio endividamento, pois o dinheiro dado como resgate aos bancos é financiado em parte tomando empréstimos aos mesmos bancos.

Por sua vez, os bancos impõem condicionalidades ao governo no manejo da dívida e como o dinheiro deve ser empregado. Depois de terem sido “resgatados” os bancos exigem cortes maciços no gasto público em serviços para a população, a privatização de infraestruturas e serviços como água, rodovias, lazer, mas não se toca no gasto militar.
E não se toca porque “War is Good for Business” (A guerra é boa para os negócios) e a mesma oligarquia que maneja o mercado financeiro obtém elevados lucros procedentes do gasto militar. E esse gasto militar - como parte do déficit público - é financiado por operações de guerra econômica que se aquecem cada vez mais e ameaçam mesclar a guerra econômica com a guerra provavelmente nuclear que os Estados Unidos incubam na complexa meada de seus interesses e contradições econômicas e geoestratégicas.

O equilíbrio do terror financeiro

A peculiar estrutura mediante a qual os Estados Unidos atuam como uma economia parasitária que financia seus déficits e seu gasto militar recebendo injeções financeiras do resto do mundo é parte da “normalidade” da ordem econômica global. Ter reservas monetárias em dólares que se reciclam para comprar bônus ou outros instrumentos do Tesouro que financiam a dívida estadunidense, e com ela a escalada militar, é considerado pelos neoliberais como uma manifestação do equilíbrio de mercados livres.

O poder midiático apresenta esta reciclagem como resultado da confiança na fortaleza econômica dos Estados Unidos porque outros países enviam para lá seus dólares para ser investidos. (2)

O real é que os estrangeiros põem seu dinheiro nos Estados Unidos não porque sejam importadores de mercadorias desse país, nem tampouco são investidores privados comprando ações ou bônus. Os maiores aplicadores de dinheiro nos Estados Unidos são os bancos centrais que não fazem outra coisa senão reciclar os dólares que seus exportadores obtiveram e por sua vez cambiaram por moedas nacionais.

Com déficits comercial e fiscal crescentes nos Estados Unidos, se produz uma inundação de dólares para o exterior, que agora são impulsionados pela baixa taxa de juros norte-americana e pela emissão alegre de papéis verdes.

Os países receptores de dólares (a China em especial) se vêem colocados diante de um dilema. Não participam nem têm influência alguma sobre decisões econômicas do governo dos Estados Unidos, que se aproveita do privilégio do dólar. Se aceitam a inundação de dólares, seja por excedentes comerciais ou pela baixa taxa de juros norte-americana ou por ambos os fatores, sofrem a pressão para a elevação da sua taxa de câmbio, a perda de competitividade comercial e o perigo de deixar aninhar perigosos capitais especulativos de curto prazo.

Para evitar essa inundação, a conduta imposta é comprar papéis de dívida emitidos pelo governo norte-americano e acumulá-los nas reservas monetárias, sofrendo o perigo de que qualquer desvalorização do dólar seja uma desvalorização de suas reservas. À China ou a outros países que acumulam grandes volumes de dólares ou de papéis da dívida norte-americana denominados em dólares, não se lhes permite comprar ativos não financeiros nos Estados Unidos. Quando a China tentou (a compra de instalações para a distribuição de combustíveis) o governo dos Estados Unidos o proibiu. Nesse caso não valem o livre fluxo de capitais, o livre comércio e a retórica habitual. Só podem comprar ativos financeiros para financiar os déficits estadunidenses.

Ao comprar os bônus do Tesouro os países entram no “equilíbrio do terror financeiro” e passam a contribuir para financiar um destino não previsto nem desejado: o gasto militar do Pentágono.

Ocorre assim para os países receptores de dólares surgidos dos déficits norte-americanos, uma dupla compreensão. São lesionados ao ver-se estruturalmente empurrados a financiar passivamente a máquina militar norte-americana por meio de um “equilíbrio do terror financeiro” baseado não em sua superioridade econômica, mas no poderio militar. E ao fazê-lo, países como a China e a Rússia estão alimentando o mesmo gasto e poderio militar que aponta armas nucleares para eles.

O maciço gasto militar tem um objetivo geoestratégico hegemônico e sua lógica última é a guerra.

Não poucas pessoas nos Estados Unidos crêem nas virtudes de estímulo econômico que uma guerra pode trazer. Recordam com nostalgia que a guerra hispano-cubano-americana, a primeira guerra da etapa imperialista, serviu em 1898 para que os Estados Unidos escapassem da crise econômica daquela década. O que foi a Segunda Guerra Mundial? Esta finalmente provocou a suficiente destruição de forças produtivas para deixar para trás a Grande Depressão e abrir caminho aos dourados anos 1950. A recessão de finais dos anos 1940 foi superada com a ajuda da guerra da Coréia.

Esta nostalgia, que incrementa o perigo de uma catastrófica guerra nuclear, ignora que aquelas guerras convencionais correspondentes à época pré-nuclear poderiam atuar como estímulos anticrises, mas a guerra atual da era nuclear perdeu essa capacidade.

As guerras com armas convencionais tinham duas virtudes como reanimadoras da economia: mediante a produção maciça de armamento convencional para atender pedidos do Estado em guerra, se gerava emprego nas cadeias produtivas de então, e também a guerra convencional acelerava a destruição de forças produtivas que a crise econômica tinha iniciado, e levava ao nível suficiente para impulsionar a recuperação sobre a base da reconstrução do pós-guerra. A destruição era a suficiente para completar e acelerar o peculiar papel da crise econômica como destruidora de riqueza para iniciar depois outra fase expansiva e não era tanta ao ponto de ameaçar a vida da espécie humana e do planeta. Era possível para o capitalismo não só sobreviver, mas utilizar a guerra como tônico estimulante para a economia.

A guerra nuclear na atual etapa não seria estimulante frente ao principal problema orgânico da crise que é o desemprego, pois agora a tecnologia sofisticada para fabricar armas utiliza muito pouca força de trabalho, mas sua capacidade destrutiva é tão formidável que o destruído não seriam fábricas, capitais financeiros ou algumas cidades, mas o planeta e a espécie humana depois do cataclismo do inverno nuclear.

A guerra atual, se é guerra convencional de desgaste como a do Iraque e do Afeganistão, não pode ser ganha pelos Estados Unidos nem é estimulante para sair da crise econômica, se é guerra nuclear que se estabelece como ameaçadora possibilidade, tampouco serviria para sair da crise porque não eliminaria o grande problema do desemprego, mas serve para fazer grandes negócios a partir do tipo de gasto público que se maneja com total opacidade e falta de critério, o gasto no qual os Bernanke, Geithner, Summers, Strauss Kahn, nada decidem: o gasto militar, o qual é capaz de reunir em si mesmo a ambição hegemônica e o super lucro do grande negócio.

Para os Estados Unidos, debilitado economicamente e com uma cultura produtiva declinante, o recurso de última instância é a ameaça constante de guerra sustentada no gasto militar crescente. Mas, a ameaça constante de guerra e o gasto militar possuem uma dinâmica diabólica que tende a realizar-se na guerra real, quando convergem a mentalidade belicista, os conflitos pela hegemonia em petróleo, gás, água etc., disfarçados de razões humanitárias ou religiosas e a crença de que na guerra nuclear pode haver vencedores.
O declínio da economia da maior potência militar apresenta fortes tensões entre um poderio militar muito superior a qualquer outro e, pela mesma razão, ambicioso de hegemonia, e uma economia em retrocesso, que exportou boa parte de sua capacidade industrial, mergulhou no parasitismo financeiro, se acomodou no consumismo do produzido por outros e perdeu a cultura produtiva que alguma vez foi relevante. Alguns assinalam que seguindo essas tendências, o país que ao terminar a Segunda Guerra Mundial dominava a economia mundial com sua capacidade produtiva, se encaminha a consumir os produtos do exterior e a exportar somente filmes, espetáculos musicais, imagens glamorosas de um consumismo insustentável e armas.

O atraso econômico frente aos ritmos de crescimento da China e não só dela, mas do chamado BRIC+3 (Indonésia, Coréia do Sul, Malásia) é também uma fonte de tensões. Ao ritmo que crescem estes países chamados emergentes, seu PIB chegará em 2020 ao que agora tem o G-7.
As tendências apontam para o retrocesso econômico dos Estados Unidos e a previsível utilização da força militar para manter a posição dominante da segunda metade do século 20.

Essas tensões se manifestam nas guerras no Iraque, Afeganistão, Paquistão, na ameaça de guerra nuclear contra o Irã e a Coréia do Norte e também nos golpes e intentos de golpes de estado na América Latina (Honduras, Venezuela, Equador, Bolívia); adicionalmente, na crescente militarização na forma de instalação de bases militares norte-americanas em escala global e na conformação de uma doutrina de guerra que inclui, entre outras coisas, a perigosa redefinição das bombas nucleares “pequenas” - podem oscilar entre a metade e até 6 vezes a capacidade da bomba de Hiroshima - como armas que fazem parte de um menu de opções cuja utilização pode em teoria, ser decidida pelo comando no teatro de operações. Significa que um general no teatro de operações dispõe de uma “caixa de ferramentas” para escolher, na qual tem disponíveis mini bombas nucleares que poderia utilizar como o faria com os blindados, a artilharia etc.

Rumo à guerra econômica?

Nas últimas semanas a economia mundial está fervilhando com as noticias sobre a guerra das divisas. Esta guerra foi preocupação central da reunião de ministros das Finanças do FMI em 23 de outubro e de novo, assim como em todas as Cúpulas do G-20 realizadas depois do início desta crise global, foram reiteradas as solenes declarações de compromisso com o “livre comércio” e a não aplicação de barreiras ao funcionamento dos mercados.

Nestas primeiras escaramuças de uma possível guerra se vêem com clareza os contendores. Por um lado, os Estados Unidos tratando de reanimar sua economia a todo custo, aproveitando-se do fato de contar com a moeda de reserva internacional que é também sua moeda nacional. Ademais, lança uma torrente de dólares para o exterior a fim de desvalorizar o dólar, melhorar sua posição competitiva e ao fazê-lo, elevar as taxas de câmbio dos demais, prejudicá-los no comércio, fazê-los reciclar os dólares comprando instrumentos da dívida norte-americana. Por outro, o restante das economias do mundo, em especial os exportadores de matérias primas do Sul, os que além do que foi dito acima, sofrem a afluência de capitais especulativos voláteis impulsionados pela baixa taxa de juros que os Estados Unidos mantêm como instrumento sem êxito para reanimar o investimento.

A transformação destas escaramuças em uma verdadeira guerra ao estilo da ocorrida nos anos da Grande Depressão dependerá da profundidade e duração que alcance a crise global. Se ela se agravar, poderá ocorrer que a guerra das divisas venha a ser o prelúdio de uma guerra comercial com a aplicação de políticas nacionais de “empobrecer o vizinho” e o desaparecimento da retórica livre-cambista e os juramentos de fé no multilateralismo.

Para todos se tornou evidente que o governo dos Estados Unidos não faz outra coisa que aplicar o nacionalismo para resolver seus problemas internos, valendo-se do privilegio do dólar e encurralando os demais. Não seria estranho que esta conduta encontrasse a reciprocidade de outros e, no contexto de longa crise agravada, poderia explodir o sistema de regras e instituições que nasceu no pós-guerra prometendo não repetir jamais uma guerra comercial.

Crise econômica e tendências políticas

A crise global tem estado mais ligada com um giro para a direita do que com um fortalecimento das forças anticapitalistas.

A relação entre crise econômica e tendências políticas foi variada no século passado. Considerando somente as maiores crises econômicas e sua tradução em resultados políticos, estas incluíram um movimento de pêndulo para a esquerda nos anos da Primeira Guerra Mundial e para a direita nos anos da Grande Depressão.

A economia russa de 1917 sofria os estragos dos anos de guerra, mas também o impacto da crise econômica européia. O triunfo da Revolução de Outubro de 1917 foi associado à crise, ainda que, obviamente, somente ela não podia gerar esse triunfo histórico anticapitalista. Muitos outros fatores interagiram com a crise econômica, mas o resultado final foi que a situação extrema a que a guerra, a autocracia czarista e a crise tinham levado a população russa, foi captada, interpretada e dirigida por uma organização política que se propunha terminar com o capitalismo e construir o socialismo.

Nos anos 1930 do século passado a Grande Depressão foi a maior crise econômica até então ocorrida, mas o que predominou associado a ela foi o fortalecimento do fascismo. Na Alemanha a combinação de indenizações pagas aos vencedores na guerra anterior, a inflação galopante, eliminada por uma condução centralizada e fortemente controlada pelo Estado fascista, a eliminação do desemprego através de grandes obras públicas e a liderança de um fanático de direita, deu como resultado o fascismo no poder e a Segunda Guerra Mundial.

Nos Estados Unidos, na Europa e na América Latina houve nesses anos movimentos de esquerda e para a esquerda, mas não alcançaram vitórias estratégicas. Não existe uma determinação mecânica pelo qual o desemprego, a pobreza, a insegurança que uma crise econômica provoca, conduza o pêndulo para a esquerda.

A insegurança e inclusive o desespero que uma crise gera pode ser apropriada e conduzida para objetivos políticos pela esquerda ou pela direita, na dependência da leitura correta ou incorreta que façam as forças em disputa, das ações concretas e da capacidade da liderança.

Na crise atual não tem sido relevante até o momento a resistência aos efeitos e políticas associadas a elas, apesar do forte impacto no emprego e do custo social que alcançou.
A greve geral na Espanha em 29 de setembro e as manifestações francesas contra a política do FMI de ajuste fiscal, são noticias a acompanhar, mas simultaneamente se fortalece a direita nos Estados Unidos e na Europa, enquanto que na América Latina se desenvolve uma contra-ofensiva imperialista contra os governos da ALBA.
Nos Estados Unidos o Tea Party avança no controle do Partido Republicano, e Obama sofre um forte voto de castigo, como expressão eleitoral do giro à direita de massas norte-americanas as quais estão se deslocando à direita pelo desemprego, a extensão da pobreza e a perda da habitação.

O Tea Party é um perigoso conglomerado em que se misturam a ignorância, e o primitivismo político com a intolerância, os preconceitos e a crença cega em ser o povo eleito para conduzir o mundo.

Sua ideologia é uma mixórdia fascistóide que inclui unir a Igreja e o Estado, eliminar os subsídios para o desemprego, expulsar os imigrantes, eliminar as ajudas para pessoas deficientes, considerar que a masturbação é equivalente ao adultério e, claro, reduzir os impostos, desmantelar o “grande governo” e destruir pela força a conspiração islâmico-russo-chinesa que obstaculiza o domínio mundial.

A Europa mostra tendências em similar direção. É de registrar que na Alemanha um partido racista e xenófobo poderia alcançar 15% dos votos. Na Itália a Liga Norte possui força. Na Holanda e na Suécia apesar de suas tradições de tolerância, partidos racistas têm chegado ao parlamento. Na França foram expulsos milhares de ciganos para a Romênia e a Bulgária, países membros da União Européia.

O movimento por um outro mundo, do Foro Social Mundial, perdeu força e se encontra atravessado por pugnas entre ONG’s de países do Norte financiadas por interesses políticos nada interessados em conquistar um mundo melhor, e movimentos sociais com posições de luta anticapitalista, em especial na América Latina.

A luta na França e na Espanha contra o ajuste fiscal neoliberal na época do neoliberalismo desprestigiado, pode marcar o início de um movimento de ascensão na resistência popular.

Parece mediar certo período entre a eclosão da crise e o aparecimento da mobilização social frente a elas, como se fosse necessário que o desemprego, a insegurança e a desesperança se aprofundassem suficientemente para lançar as pessoas ao protesto e à mobilização social. Assim ocorreu nos anos da Grande Depressão, pois somente em 1932-33, três anos depois da eclosão da crise, apareceu a pressão dos “de baixo”.

Para lutar por um mundo melhor e deixar para trás o capitalismo, a espécie humana tem que sobreviver e o planeta deve ser salvo. Para que os humanos sobrevivam é preciso deter a ameaça de guerra nuclear e para salvar o planeta deve cessar a agressão do mercado contra a natureza.

Frear a ameaça de guerra nuclear significa em termos imediatos desativar o plano de agressão ao Irã com a participação de Israel e no médio prazo, cortar o gasto militar que se combina de modo perverso com o declínio da economia norte-americana, para sustentar dois equilíbrios de terror: o financeiro e o militar. E para desperdiçar imensos recursos em máquinas, tecnologias e bombas para matar.


*Economista cubano

1) Michel Chossudovsky e Andrew Gavin Marchall. The Global Economic Crisis. (A Crise Econômica Global), em Global Research. 2010. Pág. 47-48.
2) Michael Hudson: The “Dollar Glut”. Finances America’s Global Military Build Up. (O “Excesso de Dólar”. As Finanças do Crescimento Militar Global da América), em The Global Economic Crisis. Capítulo 10.

Fonte: CubaDebate, LA HABANA, 16 de novembro de 2010.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Concentração da mídia, controle social e o esperneio dos barões da comunicação

O que leva donos de jornais e outros veículos de mídia a destacarem seus “cães de guarda” mais adestrados e raivosos para atacar, de forma virulenta e rasteira, todos aqueles que buscam construir alternativas de democratização dos meios de comunicação? Por que o ataque colérico e a ojeriza quando se quer discutir controle social dos meios de comunicação? Afinal, os veículos prestam serviço à sociedade e a ela não quer dever satisfação? Por que uma proposta gestada de discussões democráticas, em processos de conferências públicas, não tem valor algum pra essa turma?

A resposta a estas perguntas? Porque essa gente tem medo de perder o poder em que se encastelaram e de onde controlam os seus negócios com mãos de ferro, produzindo comunicação sob a lógica pura e simples da mercantilização da informação.

Só mesmo o temor do desapoderamento para justificar a campanha sistemática orquestrada e operada pelas organizações midiáticas, de norte a sul do país, nas últimas semanas, contra a sociedade civil que luta por democratização da mídia e pela implantação de conselhos de Comunicação Social nos estados.

A Constituição Federal de 1988 prevê a instalação do Conselho de Comunicação Social (CCS) como órgão auxiliar do Congresso Nacional (Capítulo V), e abre espaço para que estados e municípios façam o mesmo, pois comunicação, como um direito humano, deve ter o mesmo tratamento, por parte do Estado, que os demais direitos constitucionais, como à Saúde, à Educação, à Assistência Social, entre outros, e que têm suas políticas públicas discutidas e gestadas em conselhos.

Partindo dessa lógica, nada mais correto que a comunicação ter conselhos que garantam a participação da sociedade, o controle social e a gestão democrática para incidir nas políticas e nos serviços públicos, para o planejamento e o acompanhamento da execução destas políticas e serviços em favor da coletividade.

E de onde vem a ideia de que um conselho com participação equânime de representantes da sociedade, inclusive os empresários, pode se transformar em organismo de censura e de cerceamento da liberdade de expressão? Vem exatamente daqueles que usam da manipulação da informação para perpetuar seus privilégios e não abrem mão de continuar dominando o setor como verdadeiros senhores feudais, com a ajuda dos seus vassalos nas redações de suas empresas.

Acostumados a invariavelmente ditar as regras do jogo e a buscar impedir o avanço de qualquer discussão sobre regulamentação para o setor, usam da mesma ladainha distorcida de sempre para pregar que toda e qualquer regulamentação teria caráter de censura à imprensa e de cerceamento da livre expressão dos cidadãos.

Foi assim com o projeto que criava o Conselho Federal de Jornalismo, foi assim para garantir a derrubada da Lei de Imprensa sem que nada ficasse em seu lugar, foi assim com a regulamentação da profissão de jornalista, foi assim com a terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), e assim será com toda e qualquer proposta que crie óbices aos seus interesses privados e comerciais ou que aponte para a democratização do setor de comunicação no Brasil.

Quem censura mesmo?

Interessante notar que o ponto de sustentação do debate, para essa turma, é o mesmo de sempre: a censura aos meios de comunicação. Não deixa de ser cômica tal suposição. Quem tem o poder de censurar e de filtrar toda e qualquer informação dentro de um meio de comunicação, e todo mundo sabe disso, é o seu próprio dono ou seus controladores, quando não, os grandes anunciantes. São estes que ditam as regras a serem seguidas, determinam a linha editorial de um jornal, impõem suas listas de personae non gratae que não podem sair nos seus veículos – se saírem, é quase sempre em posição negativa –, criam uma autocensura nas suas redações que, se quebrada, geralmente redunda em demissão do autor de tal rebeldia. Que o digam Paulo Henrique Amorim, Rodrigo Viana, Luís Nassif, Franklin Martins, Ana Rita Kehl, só para citar alguns rebeldes “famosos”.

É interessante observar também como são tratados nos meios de comunicação as pessoas e os movimentos sociais que questionam e criticam o establishment. Todas são demonizadas, criminalizadas, a exemplo do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, sempre pautado, por lutar pela democratização da terra, como organismo de bandidos, terroristas, vagabundos, invasores e afins; assim como os movimentos negros, LGBTs, de mulheres, de direitos humanos, ambientalistas e tantos outros. Que espaços têm estes segmentos nos meios de comunicação para falarem sobre si mesmos de forma aberta e transparente de acordo com as suas visões de mundo e percepções da realidade cotidiana? Poucos ou quase nenhum. Isto é democrático? Onde fica a liberdade de expressão para estes grupos?
 
Dois latifúndios, a mesma realidade

Uma leitura mais aprofundada da realidade brasileira revela facilmente que dois dos maiores problemas estruturais e sociais do país se entrelaçam e se sustentam: a concentração de terras e a concentração dos meios de comunicação.

Fato é que o Brasil, em 510 anos de história, ainda não conseguiu resolver a chaga social que é a excessiva concentração de terras nas mãos de uns poucos iluminados. Ainda vivemos, em certa medida, num sistema muito próximo ao das capitanias hereditárias, onde a terra é privilégio de famílias abastadas que dominam grandes feudos, dela tiram sua riqueza e poder, e vão mantendo seus privilégios geração após geração. O Censo Agropecuário do IBGE 2006 dá a real dimensão da desigualdade. Um pequeno número de fazendas (0,91%) ocupa a maior parte do solo nacional (44,42%); enquanto a maior parte (2.477.071) se configura como pequenas propriedades limitadas a 2,36% do território nacional. São 5 milhões de famílias no Brasil à espera de terra para plantar e viver, enquanto cerca de 60% da terra agricultável no Brasil está nas mãos de pouco mais de 300 proprietários.

Paralela a essa nefasta realidade do predomínio do grande latifúndio agrário no Brasil, persiste um outro latifúndio igualmente nefasto: o midiático. A legislação, a falta ou descumprimento dela perpetuou no país o chamado “coronelismo eletrônico”, expressão precisa do sociólogo, jornalista e professor-doutor Venício A. de Lima para designar o vínculo da grande mídia às oligarquias políticas regionais e locais desde pelo menos a metade do século passado, resultando, hoje, no controle da informação restrito a cinco famiglias, que detêm as emissoras de TV cabeças de rede, inúmeras estações de rádio, portais de notícia, os grandes veículos impressos e as agências nacionais de notícia, formando poderosos oligopólios midiáticos que se capilarizam em todos os estados brasileiros.

E isso passando por cima da Constituição Federal, que prevê, em seu Artigo 220, II, § 5°, que “Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. Por falta de lei regulamentadora, esse dispositivo é meramente figurativo para os donos da mídia.

Aliás, praticamente todo o Capítulo V da Constituição, referente à Comunicação Social, padece até hoje de regulamentação por pressão dos empresários e omissão do Congresso Nacional, onde, diga-se de passagem, as bancadas da mídia e a ruralista, que se articulam muito bem, cumprem com o papel de barrar toda e qualquer proposta neste sentido.

E é justamente para que as coisas assim permaneçam que sistematicamente os barões da mídia, com seus “cães de guarda”, seguem atacando toda e qualquer proposta que aponte para a democratização dos meios de comunicação no país.

Importante destacar que até mesmo nos Estados Unidos, onde o modelo de comunicação é totalmente privado, existe a figura dos conselhos reguladores, que no caso norte-americano é a Federal Communications Commition – FCC, o que aqui equivaleria ao CCS do Congresso Nacional. A FCC existe desde 1934 com uma dupla função: a de controlar a não-intromissão de uma frequência na outra, e também a de garantir o cumprimento de princípios como o respeito à dignidade humana, a igualdade e a pluralidade, e, veja só, fazer valer regras como a proibição da famigerada propriedade cruzada (a concentração de diferentes tipos de meios de comunicação por um mesmo grupo). Os Estados Unidos são uma ditadura? Lá a imprensa é censurada? Com a palavra, os donos da mídia no Brasil.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Liberdade de imprensa, direito da cidadania


Excelente artigo do Dalmo Dallari sobre o caso da demissão da psicanaista e colunista Ana Rita Kehl do Estado de S.Paulo, por "delito" de opinião.

--

CASO MARIA RITA KEHL
Liberdade de imprensa, direito da cidadania

Por Dalmo de Abreu Dallari

A liberdade de imprensa é um dos valores fundamentais da democracia e não deve ser confundida com liberdade de empresa sem compromisso com a cidadania. Na realidade, a liberdade de imprensa é um direito dos cidadãos, que devem ter na imprensa uma fonte de informações verdadeiras e um veículo de manifestação livre do pensamento. Isso está expresso na Constituição brasileira, que no artigo 220 estabelece que nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística, dispondo também que é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. É importante notar que o mesmo dispositivo constitucional contém a garantia da liberdade e a proibição da censura, normas que se conjugam e se complementam, não havendo como conciliar a prática da censura com o exercício da liberdade.

Não é preciso dizer mais do que isso para que fique evidente que é absolutamente contraditório, e manifestamente inconstitucional, um órgão de imprensa exigir que seja garantido o seu direito à liberdade ao mesmo tempo em que ele próprio faz uma retaliação com evidente caráter de censura política e ideológica. Note-se que a Constituição veda toda e qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística, seja quem for o censor.

Se a liberdade de imprensa é indispensável para assegurar aos órgãos de imprensa a liberdade de informar e de dar publicidade a manifestações de pensamento, é também indispensável que os órgãos da imprensa livre não ocultem ou distorçam os fatos relevantes que sejam verdadeiros, nem atuem como censores, impedindo as manifestações de pensamento que não forem de seu agrado e excluindo ou procurando marginalizar os que contrariem suas convicções e conveniências.

Censura inexistente

Essas observações são necessárias e oportunas para que seja de amplo conhecimento público que uma dessas contradições está ocorrendo agora no Brasil, envolvendo um tradicional órgão de imprensa e atingindo uma notável figura de intelectual, vítima de censura e retaliação por expressar verdades e convicções que não são do agrado de alguns editores. O que torna ainda mais chocantes os fatos é que os dirigentes do grande jornal, ao mesmo tempo em que posam de vítimas de uma censura, na realidade inexistente, agem como censores rigorosos e intolerantes e punem um "delito de opinião".
 
O jornal em questão é O Estado de S.Paulo, que vem publicando diariamente uma nota informando há quantos dias ele está sob censura, chegando agora a mais de 400 dias. Na realidade, não existe qualquer fato ou informação que ele, particularmente, esteja proibido de publicar por força de uma decisão judicial ou de imposição de alguma autoridade. Não há, portanto, qualquer censura limitando a liberdade de informação e expressão desse jornal. Ele vem usando a liberdade de imprensa, que lhe está plenamente assegurada, para divulgar diariamente, há muitos meses, uma informação que não é verdadeira.

Direito e privilégio

Como é já de amplo conhecimento público, e vem sendo motivo de indignação das pessoas que desejam e defendem a liberdade de imprensa como direito da cidadania, uma violência foi cometida por dirigentes de O Estado de S. Paulo contra a notável psicanalista, e até há pouco articulista daquele jornal, Maria Rita Kehl. Agindo e expressando-se com inatacável padrão ético e estrito respeito pela pessoa humana e pelos valores da sociedade democrática, Maria Rita Kehl vinha publicando quinzenalmente seus artigos, altamente apreciados, analisando fatos e comportamentos sociais, com a agudeza de observadora especializada em psicanálise e com o senso crítico de uma autêntica humanista.

Isso aconteceu com regularidade até o dia 2 de outubro, quando publicou um artigo intitulado "Dois pesos...", no qual, com elegância e objetividade, analisou e criticou a atitude dos que, movidos pelo egoísmo e por pretensa superioridade, manifestam indignação e inconformidade com o peso eleitoral de pessoas das camadas mais pobres da população, que, libertas das tradicionais amarras da mendicância e da dependência, adotam opção política oposta à dos tradicionais dominadores e exploradores da pobreza.

Em represália ao atrevimento da publicação desse artigo, Maria Rita Kehl foi sumariamente demitida, vítima da censura e da intolerância. Para ela a liberdade de imprensa não valia, pois na concepção dos que a despediram essa liberdade não é um direito de todos, é um privilégio dos que pertencem a uma elite superior.

Existe ainda a esperança de que do corpo dirigente daquele jornal façam parte, com voz ativa, verdadeiros democratas, que tenham consciência da importância da liberdade de imprensa para a existência de uma sociedade livre e justa, na qual não se faça qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística. 

Devolva-se a Maria Rita Kehl a sua liberdade de imprensa.

domingo, 10 de outubro de 2010

A Guerra de Quarta Geração

Li no blog Vi o Mundo, do Luiz Carlos Azenha. Leitura das mais recomendadas. Vale como um alerta para o que está em jogo hoje, no mundo, com a crescente concentração dos meios de comunicação, formando-se verdadeiros cartéis da informação no mundo. A nova guerra é pelo controle das mentes! Fique alerta!

--

Guerra de Quarta Geração: “Aniquilar, controlar ou assimilar o inimigo”

Cuidado, seu cérebro está sendo bombardeado…

por Manuel Freytas, no Gaceta en Movimiento, reproduzido em espanhol pelo Pedro Ayres em seu blog e traduzido pelo Viomundo

A quarta guerra mundial já começou. Enquanto você descansa, enquanto você consome, enquanto você goza os espetáculos oferecidos pelo sistema, um exército invisível está se apoderando de sua mente, de sua conduta e de suas emoções. Sua vontade está sendo tomada por forças de ocupação invisíveis sem que você suspeite de nada. As batalhas já não se desenrolam em espaços distantes, mas em sua própria cabeça. Já não se trata de uma guerra por conquista de territórios, mas de uma guerra por conquista de cérebros, onde você é o alvo principal. O objetivo já não é apenas matar, mas fundamentalmente controlar. As balas já não se dirigem apenas a seu corpo, mas às suas contradições e vulnerabilidades psicológicas. Sua conduta está sendo checada, monitorada e controlada por especialistas. Sua mente e sua psicologia estão sendo submetidas a operações extremas de guerra de quarta geração. Uma guerra sem frentes nem retaguardas, uma guerra sem tanques nem fuzis, onde você é, ao mesmo tempo, a vítima e o algoz.

1. A guerra de quarta geração

Guerra de quarta geração (Fourth Generation Warfare – 4GW) é o termo usado pelos analistas e estrategistas militares para descrever a última fase da guerra na era da tecnologia da informação e das comunicações globalizadas.

Em 1989 começou a formulação da teoria da 4GW quando William Lind e quatro oficiais do exército e dos fuzileiros navais dos Estados Unidos produziram o documento “O rosto da guerra em transformação: até a quarta geração”. Naquele ano, o documento foi publicado simultaneamente na edição de outubro da Military Review e na Marine Corps Gazette. Embora no início da década de noventa a teoria não tenha sido detalhada,  nem tenha ficado expresso claramente  o que se entendia por 4GW, o conceito foi logo associado à guerra assimétrica e à guerra antiterrorista.

William Lind escreveu seu esboço de teoria no momento em que a União Soviética já havia sido derrotada no Afeganistão e iniciava seu colapso inevitável como sistema de poder mundial.

Portanto, a Guerra de Quarta Geração era visualizada como uma hipótese de conflito emergente do pós-Guerra Fria, tanto que alguns analistas relacionam seu ponto de partida histórico com os atentados terroristas de 11 de setembro [de 2001]  nos Estados Unidos.

Quanto à evolução das fases de guerra até a quarta geração, foi descrita assim:

Fase inicial: Arranca com a aparição das armas de fogo e alcança sua expressão máxima com as guerras napoleônicas. As formações de infantaria e a “ordem” no campo de batalha constituem seus principais objetivos e o enfrentamento entre massas de homens, sua essência. A Guerra de Primeira Geração corresponde aos enfrentamentos com táticas de linhas e colunas.

Segunda fase: Começa com o advento da Revolução Industrial e a disponibilidade no campo de batalha dos meios capazes de deslocar grandes massas de pessoas e disparar poderosos projéteis de artilharia. O enfrentamento de potência contra potência e o emprego de grandes recursos constituem a marca essencial desta geração. A Primeira Guerra Mundial é seu exemplo paradigmático.

Terceira fase: Caracteriza-se pela busca da neutralização da potência do inimigo mediante a descoberta dos flancos débeis, com a finalidade de anular a capacidade de operação, sem necessidade da destruição física do inimigo. A Guerra de Terceira Geração foi desenvolvida pelo exército alemão no conflito mundial de 1939-1945 e é comumente conhecida como “guerra relâmpago” (Blitzkrieg). Não se baseia na potência de fogo, mas na velocidade e surpresa. Esta etapa se identifica com o emprego da guerra psicológica e táticas de infiltração na retaguarda do inimigo durante a Segunda Guerra Mundial.

Em 1991, o professor da Universidade Hebraica de Jerusalém Martin van Creveld publicou um livro intitulado “A transformação da guerra”, que daria sustento intelectual à teoria da 4GW.

O autor afirma que a guerra evoluiu até o ponto em que a teoria de Clausewitz se tornou obsoleta.
Van Creveld prevê que no futuro as bases militares serão substituídas por esconderijos e depósitos e o controle da população se efetuará mediante uma mistura de propaganda e terror.

As forças regulares serão transformadas em algo diferente do que tem sido tradicionalmente, assinala van Creveld. Ele também prevê o desaparecimento dos principais sistema de combate convencionais e a conversão das guerras em conflitos de baixa intensidade (também chamadas Guerras Assimétricas).

A versão antiterrorista
Depois dos ataques terroristas de 11 de setembro [de 2001] nos Estados Unidos, a Guerra de Quarta Geração se complementa com o uso do “terrorismo midiatizado” como estratégia e sistema avançado de manipulação e controle social.

Produz-se pela primeira vez o uso sistematizado do “terrorismo” (realizado por grupos de operação infiltrados na sociedade civil), complementado pela Operações Psicológicas Midiáticas orientados para o aproveitamento social, político e militar do fato “terrorista”. A Guerra Antiterrorista (uma variação complementar da Guerra de Quarta Geração) confunde as fronteiras tradicionais entre “front amigo” e “front inimigo” e situa como eixo estratégico de disputa a guerra contra um inimigo universal invisível, disseminado por todo o planeta: o terrorismo.

A lógica do “novo inimigo” da humanidade, identificado com o terrorismo depois de 11 de setembro, se articula operacionalmente a partir da “Guerra Antiterrorista”, que compensa a desaparição do “inimigo estratégico” do capitalismo no campo internacional da Guerra Fria: a União Soviética.

A “guerra preventiva” contra o “terrorismo” (como veremos mais adiante)  produz um salto qualitativo na metodologia e nos recursos estratégicos da Guerra de Quarta Geração a serviço dos interesses imperiais da potência hegemônica do sistema capitalista: Estados Unidos.

A guerra entre potências, expressa no confronto Leste-Oeste, desaparece com a União Soviética e é substituída, a partir do 11 de setembro, pela “Guerra Antiterrorista” liderada por todas as potências e pelo império (Estados Unidos) contra apenas um inimigo: o terrorismo “sem fronteiras”.

O desenvolvimento tecnológico e informativo, a globalização da mensagem e a capacidade de influir na opinião pública mundial converteram a Guerra Psicológica Midiática na arma estratégica dominante da 4GW, em sua variação “antiterrorista”.

As operações com unidades militares são substituídas por operações com unidades midiáticas e a ação psicológica substitui as armas no teatro da confrontação.

Desta maneira, a partir do 11 de setembro a “Guerra Antiterrorista” e a “Guerra Psicológica” formam as duas colunas estratégicas que sustentam a Guerra de Quarta Geração, com os meios de comunicação convertidos em novos exércitos de conquista.

2. Guerra Psicológica (ou Guerra sem fuzis)
Na definição conceitual atual, a coluna vertebral da Guerra de Quarta Geração se enquadra no conceito de “guerra psicológica”, ou “guerra sem fuzis”, que foi assim chamada, pela primeira vez, nos manuais de estratégia militar da década de setenta.

Em sua definição técnica, “Guerra Psicológica” ou “Guerra Sem Fuzis” é o emprego planejado da propaganda e da ação psicológica orientadas a direcionar condutas, em busca de objetivos de controle social, político ou militar, sem recorrer ao uso das armas.

Os exércitos militares são substituídos por grupos de operação descentralizados, especialistas em insurgência e contrainsurgência e por especialistas em comunicação e psicologia de massas.

O desenvolvimento tecnológico e informático da era das comunicações, a globalização da mensagem e as capacidades para influenciar a opinião pública mundial converteram as operações de ação psicológica midiática na arma estratégica dominante da 4GW.

Como na guerra militar, um plano de guerra psicológica está destinado a: aniquilar, controlar ou assimilar o inimigo.

A guerra militar e suas técnicas se revalorizam dentro de métodos científicos de controle social e se convertem em uma eficiente estratégia de domínio sem o uso das armas.

Diferentemente da guerra convencional, a Guerra de Quarta Geração não se desenvolve em teatros de operação visíveis. Não há frentes de batalha com elementos materiais: a guerra se desenvolve em cenários combinados, sem ordem aparente e sem linhas visíveis de combate; os novos soldados não usam uniformes e se misturam aos civis. Já não existem os elementos da ação militar clássica: grandes unidades de combate (tanques, aviões, soldados, frentes, linhas de comunicação, retaguarda, etc.)

As bases de planejamento militar são substituídas por pequenos centros de comando e planejamento
clandestinos, desde onde se desenham as modernas operações táticas e estratégicas.

As grandes batalhas são substituídas por pequenos conflitos localizados, com violência social extrema e sem ordem aparente de continuidade.

As grandes forças militares são substitutídas por pequenos grupos de operação (Unidades de Guerra Psicológica) dotados de grande mobilidade e de tecnologia de última geração, cuja função é detonar acontecimentos sociais e políticos mediante operações de guerra psicológica.

As unidades de Guerra Psicológica são complementadas por Grupos de Operação, infiltrados na população civil com a missão de detonar casos de violência e conflitos sociais.

As táticas e estratégias militares são substituídas por táticas e estratégias de controle social, mediante a manipulação informativa e a ação psicológica orientada para direcionar a conduta social em massa.
Os alvos já não são físicos (como na ordem militar tradicional), mas psicológicos e sociais. O objetivo já não é a destruição de elementos materiais (bases militares, soldados, infraestrutura civil, etc.), mas o controle do cérebro humano.

As grandes unidades militares (barcos, aviões, tanques, submarinos, etc.) são substituídas por um grande aparato midiático composto pelas redações e estúdios de rádio e de televisão.

O bombardeio militar é substituído pelo bombardeio midiático: os símbolos e as imagens substituem as bombas, mísseis e projéteis do campo militar.

O objetivo estratégico já não é somente o poder e controle de áreas físicas (populações, territórios, etc.), mas o controle da conduta social em massa.

As unidades táticas de combate (operadores da guerra psicológica) já não disparam balas mas símbolos direcionados a conseguir o objetivo de controle e manipulação da conduta de massa.

Os tanques, fuzis e aviões são substituídos pelos meios de comunicação (os exércitos de quarta geração) e as operações psicológicas se constituem em arma estratégica e operacional dominante.

3. O Alvo
Na Guerra sem Fuzis, a Guerra de Quarta Geração (também chamada Guerra Assimétrica), o campo de batalha já não está no exterior, mas dentro de sua cabeça.

As operações já não se traçam a partir da colonização militar para controle um território, mas a partir da colonização mental para controlar uma sociedade.

Os soldados da 4GW já não são militares, mas especialistas de comunicação em insurgência e contrainsurgência, que substituem as operações militares pelas operações psicológicas.
Os projéteis militares são substituídos por símbolos midiáticos que não destroem o corpo, mas anulam sua capacidade cerebral de decidir por si próprio.

Os bombardeios midiáticos com símbolos estão destinados a destruir o pensamento reflexivo (informação, processamento e síntese) e a substituí-lo por uma sucessão de imagens sem relação com tempo e espaço (alienação controlada).

Os bombardeios midiáticos não operam sobre sua inteligência, mas sobre sua psicologia: não manipulam sua consciência, mas seus desejos e temores inconscientes.

Todos os dias, durante 24 horas, há um exército invisível que aponta para sua cabeça: não utiliza tanques, aviões nem submarinos, mas informação direcionada e manipulada por meio de imagens e notícias.
Os guerreiros psicológicos não querem que você pense na informação, mas que consuma informação: notícias, títulos, imagens que excitam seus sentidos e sua curiosidade, sem conexão entre si.

Seu cérebro está submetido à lógica de Maquiavel: “Dividir para conquistar”. Quando sua mente se fragmenta com notícias desconectadas entre si, deixará de analisar (o que, porque e para que cada informação) e se converterá em consumidor. Quando você consome mídia sem analisar os ques e os porquês, os interesses do poder imperial se movem por trás de cada notícia ou informação jornalística você está consumindo Guerra de Quarta Geração, de ordens psicológicas direcionadas através de símbolos.

As notícias e as imagens são mísseis de última geração que as grandes cadeias midiáticas disparam com precisão demolidora sobre os cérebros convertidos em teatro de operações da Guerra de Quarta Geração.
Quando você consome notícias com “bin Laden”, “Al Qaeda”, “terrorismo muçulmano”, sua mente está consumindo símbolos de medo associados ao terrorismo, “delinquencia organizada”, “vândalos”, “grevistas”.

O mesmo acontece no México quando se diz “Atenco” [localidade mexicana conhecida por ter resistido a uma ação de despejo], “macheteros” [que usam machetes, símbolo dos campesinos mexicanos], “privilegiados do SME” [o combativo Sindicato dos Eletricitários do México], “zapatistas”, “professores” e um grande catálogo de etc. Enquanto isso seu cérebro está servindo de teatro de operações para a Guerra de Quarta Geração lançada para controlar as sociedades em escala local e global.

Quando você consome a mídia sem analisar os porques e para ques ou os interesses do poder imperial que se movem por trás de cada notícia ou informação jornalística, você está consumindo a Guerra de Quarta Geração.




sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Colunista é demitidade do Estadão por "delito" de opinião

Pelo artigo abaixo, publicado em O Estado de S.Paulo, a psicanilista e colunista do jornal Ana Rita Kehl pagou com sua demissão do cargo. Veja que interessante: a colunista é demitida por opiniar numa linha diferente do jornal, que prega, insistentemente, a ideia (falsa) de que defende a liberdade de expressão e de imprensa no Brasil. 

O que eles defendem, na verdade, e isso está muito claro, é a sua "liberdade de empresa". Tem dúvida? Como bem explicou a psicanalista posteriormente, "fui demitida por um 'delito' de opinião".

--
 
Dois pesos...

Por Maria Rita Kehl

Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.

Se o povão das chamadas classes D e E – os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil – tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.

Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por "uma prima" do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.

Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa, como no assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias.
 

Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da "esmolinha" é político e revela consciência de classe recém-adquirida.

O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família, que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de "acumulação primitiva de democracia".

Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.

Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.


Reproduzido do Estado de S.Paulo, 2/10/2010

domingo, 8 de agosto de 2010

Quando o crime compensa e a Justiça ajuda

Se vamos a um supermercado fazer compras com um filho pequeno e, por uma daquelas tentações típicas da infância, ele pega algumas balinhas em meio a centenas delas na prateleira e põe no bolso, ao chegar em casa, quando descobrimos o inocente furto, por nossos padrões de conduta e honestidade, repreendemos firmemente a criança, apontando seu erro e colocando aquele ato como algo errado socialmente e passível de punição. “Isso é crime, meu filho! Fosse você adulto, poderia até ser preso!”, dizemos. “O crime não compensa, nunca!”, reforçamos, para que não lhe restem dúvidas do caráter ilícito de se pegar algo que não lhe pertence ou do querer se dar bem sobre as outras pessoas.

Mas o tempo passa e, a cada novo escândalo de golpes milionários contra o erário público e a impunidade que reina sobre os autores desses golpes, é cada vez mais difícil convencer nossas crianças de que o crime não traz compensações. Pior que isso, de tempos em tempos a nossa Justiça ajeita a vida desses criminosos e corrobora para que as nossas crianças, quando jovens, cheguem à conclusão de que as reprimendas paternas na infância tinham algo de vazias em si.

Tem virado praxe a Justiça varrer para debaixo do tapete sua própria sujeira, o que cria uma terrível sensação de impunidade na sociedade. Prova disso foi dada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que decidiu, no último dia 3/8, por unanimidade, aposentar compulsoriamente o ministro afastado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Paulo Medina (leia mais aqui). Acusado de vender sentenças e de ter recebido cerca de R$ 1 milhão para beneficiar empresas do ramo do jogo com máquinas caça-níqueis, o ministro foi punido por esse desvio grave sendo, veja só, aposentado com proventos proporcionais ao que recebia enquanto exerceu o cargo, ou seja, cerca de R$ 25 mil. Em lugar de ser punido, ele foi premiado com vitalícios R$ 25 mil mensais e outras benesses monetárias!

Claro, o desonesto juiz ainda responde à ação penal no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo mesmo crime que foi julgado pelo CNJ. E, caso seja considerado culpado, pode receber pena de até 13 anos de reclusão e multa. Além disso, perde a aposentadoria, o que seria mais que justo.

Mas o relator desse processo no STF é o “famoso” ministro Gilmar Mendes, figura das mais sombrias e bastante conhecida por suas decisões sempre favoráveis a bandidos de colarinho branco; mais recentemente ficou célebre por limpar a vida de “fichas sujas” para que se candidatassem nestas eleições. Então, não há muito o que se esperar de positivo nesse processo. Será mais um a corroborar com a tese de que, no Brasil, o crime compensa, jogando por terra o que ensinamos a nossos filhos.

E não se trata de caso isolado. No início do ano, outro escândalo no Judiciário – que está mais do que carcomido em suas entranhas tamanha a corrupção – culminou numa quase premiação com aposentadoria compulsória para elementos desse poder que cometerem ilícitos graves no exercício das suas funções públicas.

O presidente do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) Mariano Alonso Ribeiro Travassos, o ex-presidente da instituição José Ferreira Leite, o desembargador José Tadeu Cury e os juízes Marcelo Souza de Barros, Antonio Horácio da Silva Neto, Irênio Lima Fernandes, Marcos Aurélio dos Reis Ferreira, Juanita Duarte, Graciema Caravellas e Maria Cristina Simões foram pegos num esquema que desviou mais de R$ 1 milhão do tribunal para a entidade maçônica Grande Oriente do Mato Grosso.

A aposentadoria compulsória, que já seria um soco a mais no estômago já fustigado do povo brasileiro, não se efetivou porque funcionou o famigerado e conhecido corporativismo do Judiciário, e aconteceu algo tão pior quanto à aposentadoria compulsória dessa gente. Todos foram livrados das suas falhas e retomaram os seus cargos normalmente, como se nada demais tivesse acontecido, graças ao ministro Celso de Mello, que decidiu liminarmente favorável aos réus e contra a decisão do CNJ, num choque de interpretações entre as Cortes, trazendo uma insegurança jurídica quanto ao que se fazer quando um magistrado é pego com a mão na botija.

Podres poderes! E olha que só foram levantados aqui uns poucos casos recentes. Se buscarmos casos passados e mexermos nesse baú de estrume que vem se tornando o Judiciário brasileiro, que segue intocável e inviolável, a fedentina vai ser grande. Ali há sempre uma mão suja para lavar a outra, e haverá sempre o argumento cínico de que magistrados cometem “equívocos” que podem ser reparados sem que ele veja o sol nascer quadrado. Afinal são gente fina e bem estabelecida.

Bonito isso! O ladrão de galinha vai pro xilindró; o larápio de colarinho branco ou de toga é aposentado compulsoriamente ou até retoma o seu cargo numa boa. Tudo depende de interpretação judicial. Para estes, a sujeira é varrida para debaixo do tapete e a vida volta à normalidade, como aqui querem fazer com o mão leve do ex-conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe, Flávio Conceição de Oliveira Neto, que foi preso, em 2007, na famosa Operação Navalha, num esquema que desviou milhões dos cofres públicos do Estado.

O sujeito mete a mão no dinheiro público e ainda vem se valendo do dinheiro da sua rapinagem para pagar bons advogados, o que tem lhe garantido sucesso nos processos a que responde, além de continuar recebendo sua aposentadoria compulsória de R$ 20 mil mensais normalmente. Bom demais, não?! Mas pode ficar melhor... pra ele. Flávio pode retomar, brevemente, as suas funções no TCE/SE, graças a um mandado de segurança.

Não é possível mais aceitar que se continue a premiar aqueles que cometem crimes contra o patrimônio público. Se ensinamos diuturnamente aos nossos filhos, como referência para a construção sólida da sua conduta moral, que o crime não compensa, a Justiça não pode seguir no caminho contrário. Se caminha, ela torna-se a negação da própria justiça. Porque se aqueles que fazem a Justiça não tem capacidade de punir os seus pares quando necessário, que moral terão para punir os cidadãos comuns?