No dia de hoje, na Assembleia Legislativa de Sergipe, uma figura aparentemente muito frágil, de estatura pequenina, mas de um grande coração e personalidade marcante, vai estar recebendo o título de cidadã sergipana. Trata-se da belga Mathilda Antoniette Christine Hendriex, mais conhecida – principalmente na bela, mas paupérrima região do baixo São Francisco – como Irmã Francisca. Uma justa e importante iniciativa da deputada estadual Professora Ana Lúcia, do PT. Já era tempo.
Conheci essa brava e extraordinária lutadora social em 2007, quando tive a oportunidade de escrever sobre a sua vida para um jornal do mandato do então deputado federal Iran Barbosa, do PT. Liguei pra ela, conversamos por telefone, marcamos a ida à Pacatuba para a entrevista. Ela sem me conhecer, e eu louco para conhecê-la, pelo tanto que já tinha ouvido falar desta belga, que desde 68 largou a família e o conforto do seu país para vir pra Sergipe, evangelizar e também lutar pelos mais pobres e por reforma agrária neste estado de coronéis a dar de bala nos mais ousados.
Por muitos motivos, guardo aquela viagem como ‘muito especial’ pra mim, tanto na ida como na volta. Cheguei em Pacatuba no começo da tarde, e foi muito fácil achar a casa da Irmã Francisca. À primeira pessoa a quem perguntei pela missionária na praça principal da cidade já indicou o caminho. Todos ao seu redor também ajudaram a apontar o local.
Chegando lá, foi com muita alegria que a irmã e outras missionárias me receberam. Casinha simples, mas muito gostosa e aconchegante, jardim florido, alegria e paz no ar. E então passei a conversar por mais de uma hora com a belga de Wilderen. Ao longo da entrevista, descobri a força e a determinação daquela pequena senhora, que dedicou e arriscou a sua vida em prol de pessoas que muitas vezes nem conhecia, mas resistia junto com elas, no ensinamento e na luta, pregando a correta mensagem de que “terra é direito de todos”.
Entre muitas disputas com fazendeiros e jagunços, expulsões de ocupações e acampamentos, e conquistas de terras em favor dos camponeses, a belga que agora se torna sergipana deixa muitas e valiosas lições, entre as quais, que nunca se deve desistir da luta, e que a consciência de classe e de direitos por parte dos trabalhadores, seja da cidade ou do campo, é fundamental no enfrentamento às oligarquias e às elites dominantes, que querem tudo pra si, deixando as migalhas para o resto do povo.
Reproduzo abaixo a entrevista feita há cinco anos, porque também descobri que é um dos poucos registros na nossa imprensa da vida desta pequena grande missionária. Infelizmente, no meio da nossa miopia social, perdem-se os registros históricos de personalidades fundamentais na construção de nossa sociedade e nas lutas camponesas e dos trabalhadores. Irmã Francisca é uma dessas figuras emblemáticas. Fico feliz em ter tido a sorte e a oportunidade de escrever um breve perfil da sua vida aqui em Sergipe. Pena ter sido para um jornal tablóide, ou seja, com espaço curtinho para uma história tão rica e bela.
No registro, descobri um pequeno lapso de tempo numa fala da Irmã, quando ela diz que já tinha 42 anos em Sergipe. O ano era 2007, e se ela chegou por aqui em 1968, tinha 39 anos em solo sergipano. Mas manterei o texto conforme foi construído. É coisa pequena, diante de tão grandioso exemplo de vida.
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Irmã Francisca: “Não me canso de lutar”
Se alguém passar pelo Baixo São Francisco e procurar saber quem é Mathilda Antoniette Christine Hendriex, dificilmente obterá resposta. Mas pergunte quem é Irmã Francisca e, de imediato, todos indicarão onde mora uma senhora de estatura mediana, corpo franzino, sorriso largo e acolhedor, sotaque estrangeiro, mas já ‘temperado’ à brasileira. Esta belga de 77 anos, nascida na pequena cidade flamenga de Wilderen, na província de Namur, norte da Bélgica, veio para o Brasil em 68, como missionária-educadora.
Ela e mais três missionários belgas aterrissaram em terras brasileiras num momento conturbado da vida política do país. O ano era 1968, em pleno recrudescimento do Regime Militar com o Ato Institucional nº 5. Foram direto para Japaratuba, atendendo ao chamado do bispo da diocese de Propriá, Dom José Brandão de Castro, para se juntar a outros belgas que aqui já estavam, entre eles Gérard Lothaire Jules Olivier, ou Padre Geraldo, ex-prefeito de Japaratuba. “Eu ia evangelizar na África. Mas nos pediram para vir para o Brasil, através do Dom Brandão, então eu vim”, recorda.
O nome, Francisca, vem da veneração por São Francisco de Assis e seus ensinamentos. Sua vida no Brasil e a força para lutar pelas causas do povo e por reforma agrária também tiveram a inspiração em nomes como Dom José Brandão, Pedro Casaldáliga, Frei Beto e Leonardo Boff.
Nada foi obstáculo para Irmã Francisca. Problemas com a alimentação, o clima, e o idioma – o curso de português feito em nove meses, ainda na Bélgica, não ajudou muito no início. “A minha raiz flamenga só ajudou mesmo na pronúncia. Mas o português mesmo foi muito difícil. Só melhorei com o tempo”, conta.
LUTA PELA TERRA
Francisca lembra que, como educadora, teve algumas dificuldades de entrar no meio do povo, por sua cor e pela dificuldade no idioma. Ela, as outras duas irmãs e Padre Nestor, o outro missionário do grupo, seguiram os passos do padre Gerard, que já pregava a reforma agrária na região de São José, em Japaratuba. “Trabalhamos juntos e ali crescemos muito”.
Já entre 1973 e 1974, o grupo de Francisca, a Congregação Irmãs da Caridade, deixou a cidade de Japaratuba e foi trabalhar com os posseiros. “Fomos para Canhoba, reduto de fazendeiros e com muitos problemas de conflitos por terra. Fomos trabalhar na roça, evangelizar e conscientizar aquela gente de que a terra era direito de todos. Claro, tivemos problemas”, diz.
Com o tempo, aquilo foi incomodando os fazendeiros e criando tensão. Dom José Brandão de Castro, então bispo de Propriá, apoiava o grupo, mas a tensão só aumentou, até explodir. “De uma hora pra outra, tivemos que fugir para Propriá no meio da noite pra não morrer, deixando tudo para trás”, relata a missionária.
Depois de Canhoba, o grupo ‘perambulou’ por quase cinco anos entre Betume, Ilha das Flores e Brejo Grande, agora ao lado também do Frei Enoque. “Vivíamos mais dentro de um Jeep que em casa. Como a gente mexia não só com o religioso, mas com o social também, mais uma vez tivemos problemas, desta vez em Ilha das Flores. Acabamos novamente expulsos por fazendeiros e gente ligada à própria Igreja. Saímos com pedras atiradas às costas”, relata.
Sem nunca desistir, no início dos anos 80 seguiram para nova frente, agora em Pacatuba, na área da Fazenda Santana dos Frades, onde posseiros viviam à míngua, sendo constantemente ameaçados por fazendeiros e seus jagunços. Até se conscientizarem e passarem a lutar pela terra na qual viviam.
“Foi uma luta muito grande ao lado daquele povo. Foi ali que Dom Brandão se engajou mesmo na luta pela terra. Ele foi evoluindo ali, junto com a gente, compreendendo a urgência de lutar pela sobrevivência daquele povo. Ficamos três anos, até que conseguimos a posse da área graças ao apoio de muitas entidades e de muita gente de fora. Depois, não deixamos mais Pacatuba”.
Depois da conquista de Santana, outra grande luta de Irmã Francisca: a conquista da Lagoa Nova. Foram 16 anos de muita luta, conflitos e enfrentamentos, até quando saiu a imissão de posse da área em favor dos posseiros. “Confesso que houve momentos em que eu pensei em desistir. Foi muito sofrimento. Mas a amizade pelo povo falou mais forte. E valeu a pena. Foi uma grande vitória”.
BALANÇO DE VIDA
Olhando o que ficou para trás ao longo de 42 anos, Irmã Francisca sorri e, sem pestanejar, avalia: “A gente veio pra cá sem saber muito bem o que iria viver. Outro continente, outro país, outra cultura, enfim; mas para mim foi muito válido. Só posso dizer que valeu a pena. Se tivesse que fazer tudo outra vez, faria”.
Para ela, só uma ampla reforma agrária resolveria grande parte dos problemas do Brasil. “Não tem como empregar o povo senão dando terra para as famílias trabalharem. Reforma agrária é vital para o Brasil”, defende a missionária. “Ter a ajuda política é imprescindível. A politização do povo também é muito importante, porque ainda tem muita luta pela frente”, avalia.
Sobre a dicotomia das nacionalidades, Irmã Francisca responde com franqueza: “Com 42 anos aqui, não há mais retorno. Sinto-me muito mais brasileira que belga, e o povo daqui me adotou. Tenho laços familiares na Bélgica, mas aqui é a minha vida”, revela a lutadora do povo, que sempre espera por novos desafios. Ela finaliza com uma frase que resume todo o seu estilo de viver, mesmo depois de quatro décadas passando por cima da incompreensão e do atraso em terras sergipanas: “Não me canso de lutar. Nunca”.
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