domingo, 4 de julho de 2010

Futebol, ópio e a invisibilidade das tragédias brasileiras


Que seja uma blasfêmia, em se tratando do “país do futebol”, mas ainda bem que a Seleção Brasileira perdeu para Holanda e voltou para casa, de mala e cuia e algumas vuvuzelas de lembrança. E ainda bem, também, que a Argentina fez pior, caindo de 4 para a Alemanha e desafinando seu tango como nunca se viu antes na história das Copas. Assim, troçando dos nuestros hermanos, a minha blasfêmia deve ganhar menos críticas daqueles brasileiros que vêem no futebol nosso mais  forte elo identificador enquanto nação e nosso melhor cartão de apresentação para o mundo.

Não cultuo o futebol como arte ou como grife de qualidade dos brasileiros, assim como não engulo o título que é dado a nossa gente, de povo pacífico e ordeiro – antes fosse altivo e guerreiro; como também, dá-me urticária a disseminação da ideia de que vivemos numa “democracia racial”. Tudo balela para amansar as massas e incutir na coletividade a passividade e a condescendência ante a tantas mazelas que persistem de norte a sul deste gigante deitado eternamente em berço esplêndido e de minar a nossa resistência ante o que é ou vem de fora.

Para mim, futebol sempre foi ópio para o povo, instrumento de alienação e catarse coletiva. O que rola nas arenas futebolísticas em nada se diferencia da prática do Panis et Circenses dos romanos da Antiguidade.

Pode parecer exagero de minha parte, mas veja como a Copa do Mundo anestesia as massas, a ponto de uma tragédia como a que se abateu sobre municípios de Alagoas e Pernambuco, assolados por pesadas chuvas, que deixaram pelo menos 46 mortos e muita destruição, não chocar a nação.

Não vi grandes mobilizações para ajudar as famílias que perderam tudo nesses municípios assolados pelas chuvas torrenciais e pela incompetência dos governantes locais. Um ou outro programa de rádio e TV, um ou outro sindicato ou central sindical, uma ou outra igreja chegou a se mexer, mas sem grandes impactos em termos de ajuda humanitária.

Ora, pelas cenas da tragédia, que mais lembravam a passagem de uma tsunami, em nada a destruição em Alagoas e Pernambuco ficariam atrás de outras grandes tragédias do mundo, mas os brasileiros a viram como algo menor, mesmo com o choque das imagens na TV. E nisso, a capacidade de mobilização da nossa gente para ajudar as vítimas e os desabrigados não chegaram nem perto de mobilizações, por exemplo, como as que foram feitas para ajudar as vítimas do Haiti, que angariou muitas doações.

Não que o Haiti, ou mesmo a Indonésia, a Somália ou outro país assolado por alguma tragédia não mereça receber a bondade e a solidariedade do povo brasileiro, conhecido mundialmente pelo valoroso espírito humanitário. Mas é que, quando a tragédia é aqui mesmo, debaixo das nossas barbas, essa solidariedade não se mostra igual.

E isso tem muito da nossa mania de rirmos de nós mesmos. Rimos tanto das nossas mazelas políticas e sociais que, mesmo quando a piada não tem a menor graça, seguimos em frente, sem tratar com mais seriedade aquilo que é realmente muito sério.

Veja como foi um sucesso, em meio à Copa do Mundo de futebol, a mobilização dos internautas em torno do “CALA A BOCA, GALVÃO” no Twitter, ficando por dias no topo dos mais acessados e comentados nessa rede social em todo o mundo; um feito! Depois veio o “CALA BOCA, TADEU SCHMIDT”, com igual sucesso. Por que os internautas não empreenderam igual esforço para puxar uma campanha de ajuda humanitária às vitimas alagoanas e pernambucanas? Certamente, os jogos da Copa eram mais importantes.

Mas esse mal do brasileiro, que não enxerga a si mesmo nem a sua gente sofrida, não vem de agora. Se recordarmos, demorou séculos para as elites brasileiras e a sociedade como um todo entenderem que o flagelo da seca, que assolava – e ainda assola – o sertão do Nordeste era um problema mais de políticas públicas e de vergonha na cara de muitos políticos que da severidade da natureza da região.

Custou tempo à sociedade brasileira para entender a dimensão dantesca dessa tragédia e para começar a ajudar os nordestinos flagelados, como também para cobrar dos sucessivos governos que trabalhassem para mitigar o flagelo, e não mantê-lo para satisfazer a sanha política dos coronéis da marca dos Sarney, dos ACM e tantos outros, que só se favoreciam com a seca e a miséria do sertanejo. Sempre tiraram seus votos dali, encabrestando as gentes sofridas e ignorantes.

Ao passo que sertanejos eram devorados pela seca persistente, os olhos dos brasileiros mais enxergavam as tragédias – não menos dramáticas – mundo afora, na África e Ásia, em países assolados por catástrofes naturais, guerras tribais sem fim e a ganância de ditadores sanguinários. Cantava-se “We are the world” da campanha mundial “USA for Africa”, mas pouco se dava atenção às músicas de Luiz Gonzaga ou à poesia denunciativa de Patativa do Assaré.

A dor dos flagelados sertanejos e a barriga roncando das suas crianças desnutridas, vivendo de disputar a palma com o gado, nunca chocaram tanto a ponto de mobilizar a nação para ver esse flagelo superado. Sempre prevaleceu uma certa invisibilidade sobre essa tragédia, assim como sobre tantas outras que de quando em quando batem à nossa cara e nos fazem lembrar do nosso real subdesenvolvimento e da nossa pouca humanidade para com nossa própria gente.

Para além das quatro linhas, temos muita coisa mal resolvida. Mas o futebol, assim como o Carnaval, ajuda a manter as coisas como estão, sem grandes comoções. Chora o povo, coletivamente, a eliminação do Escrete Canarinho numa Copa do Mundo, mas não há igual choro ante as nossas tragédias diárias.

O Mundial acabou para a “Pátria de Chuteiras”. Mas logo virão o Campeonato Brasileiro, a Taça Libertadores da América, a Copa Sul-Americana de Clubes, os campeonatos regionais... É muito ópio para um povo só!

6 comentários:

  1. Caro George, admiro suas palavras, bem como seu trabalho. Contudo, quero lhe provocar, se é que isso é possível.Vejamos, você apresentou algumas informações que há muito deixaram de ser novidade, ao menos, para as pessoas que se dizem conscientes da realidade do país, ou mesmo dos engajados polticos, mas pouco falou sobre as possiveis saídas para resolver estas mazelas sociais. Afinal, que o brasileiro é apaixonado por futebol, ou forçado a gosta desde pequenino, prova é que ninguém torce pelo Sergipe, todavia é saopaulino, ou flamenguista desde tenra idade, a mídia televisiva que o diga, aí cabe uma parcela de culpa aos colaboradores da televisão, em sua maioria Jornalista. Ora, em 70 vivemos essa démodé paixão futebolistica, enquanto o AI 5, torturava e matava tudo que soprava contra os ventos do Regime Militar, mas eramos Tri e daí? Sou um dos que sente a força dos manipuladores das massas, porém acredito que estamos fazendo pouco, ou quase nada, então, lhe pergunto, o que fazer para apaixonar a junventude e toda classe dos trabalhadores e miseráveis a verter um sentimento mais cônscio da alienação em que vivemos? Como fazer o povo perceber que a pseudo felicidade em que vevem vale menos que a infelicidade de se descobrir infeliz.
    Um forte abraço,
    José Ailton - Secretário de Política e Formação Sindicl do SINTECT/SE.

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  2. Eu concordo plenamente. Torço contra a seleção(não contra o Brasil) desde 1978 por questões políticas minhas, despertadas um pouco atrasadas. Até hj não me arrependi de nada. Apenas acho lamentável que pouco tenha mudado no cenário político de lá p cá. Apenas houve uma abertura para outras dinastias políticas, agora comandadas pelo PT, sindicalistas, ex-guerrilheiros, ex-presos políticos e sonhadores q venderam seus sonhos em nome do podre poder. Continuemos a acreditar na derrubada deste poder e a sonhar com um novo modelo idealizado pelos trabalhadores.

    Abraço do Pacheco

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  3. Caro Ailton,

    Importante o debate e a provocação a partir de um texto que produzi. Gosto disso, e é com esse objetivo que alimento meu blog (sempre que posso).

    Não tenho dúvida que grande parte desta "anestesia" das massas diante de tantas mazelas deve-se, em grande parte, pela manipulação dos meios de comuncação, a começar pelo excesso de telenovelas alienantes e jogos de futebol, passando também pela produação de jornalismo tendencioso e programas de besteirol, que em nada fomentam a formação de massa crítica na população. O objetivo é manter a maior parte do nosso povo alheio ao que acontece no real, passando a impressão de que "a vida é assim mesmo e não a nada a se fazer".

    Se existe saída para resolver tudo isso, sinto-me pequeno diante de tantos desafios, mas acho que dou uma pequena contribuição ao escrever o que penso para chamar a atenção sobre a falta de senso crítico nas pessoas. É pouco o que faço, mas poderia estar recebendo uns bons tostões para escrever em um jornal ou outro veículo coisas que não ajudam a mudar a sociedade (como muitos jornaistas fazem por aí), e isso eu não quero.

    Mas, para além dessa gota no oceâno que é a minha contribuição, é preciso lutar por "democratização nos meios de comunicação" e "controle social" sobre a programação da mídia. Só assim poderá a sociedade decidir que tipo de programação ela quer ver, jogar os BBBs e os Faustões na lata do lixo e exigir programas educativos e de discussão crítica no horário nobre, em lugar das novelas e festejados "clássicos" do futebol. Por que é que os melhores programas de educação, cultura e formação são nos piores horários das emissoras?

    As TVs e Rádios são concessões públicas, e não pertecem aos Marinho, Silvio Santos, Edir Macedo e outros. Portanto, é a sociedade como um todo, e não os índices do Ibope, que deve decidir o que é bom ou não para a construção cultural e política do nosso povo. Com certeza, passando 99% de filmes e programas enlatados "mande in USA" é que essas emissoras não vão ajudar o povo a enxergar melhor suas mazelas e a buscar mudar essa sociedade mal resolvida em que vivemos.

    Um abraço e continuemos a discussão, se assim achar melhor.


    George

    --

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  4. Caro George,
    Não gostar de futebol é um problema seu, quer consertar as mazelas da humanidade ou quer ver os brasileiros em guerra? Quando não quiser assistir os programas banais que existem mude de canal ou desligue a Televisão. No ponto dos seguidores no twiter, que estão participando do movimento "Cala boca Galvão", é o programa que conseguiu conquistar maior audiência, que aliás é seu papel como programa humorista, quem deve chamar a atenção para essas causas são os políticos e a imprensa. Já levou a sua doação?
    E futebol tambem é cultara!

    Até +

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  5. Caro George,

    Suas idéias coadunam com as minhas, aliás, discordamos em um ponto, apenas, quando, afirma ser pouco o que faz; rebato com um pensamento, que suponho, pertence a Francisco de Assis, 'faça primeiro o que pode, depois o que é possível e por fim farás o impossível'. Logo, se pensarmos por esta óptica suas contribuições são maiores do que você afirma. Reconheço que é uma falácia o que dizem os donos dos veículos de comunicação do país, ao afirmarem, que as pessoas não conseguiriam absorver uma produção de nível mais elevado do que a oferecida. Assusta-me declarações como essas, que gozam de status de verdade para alguns, assim, como a audácia em dizer algo com tanta certeza, afinal, nunca foi dado tamanha oportunidade aos fadigados trabalhadores. Contudo,continuo otimista, apesar de estarmos, ainda - já estivemos em pior situação -longe de uma democratização dos meios de comunicação, todavia, com condições reais de avancarmos nesse processo.
    Quanto a provocação - estava certo em não ser possível - de fato, queria era extrair um pouco mais de informações suas sobre esta discussão.
    Desejo-lhe sucesso no novo mandato, a partir de julho, à frente do Sindicato dos Jornalistas e, quem sabe, consiga mais seguidores entre os seus.
    Um forte abraço e inté.

    José Ailton.

    ERRATA DO COMENTÁRIO ANTERIOR: pseudo felicidade em que VIVEM, vale menos que a infelicidade de se descobrir infeliz.

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  6. Futebol é o ópio do povo e a cocaína dos "intelectuais" e da "intelligentzia".

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