terça-feira, 31 de julho de 2012

Infância sem espaços para a infância

Dia desses, passando por uma das ruas do meu bairro, dei de cara com um movimento singular de crianças. Num cantinho espremido da rua, entre a calçada e a pista de rolamento, em meio a uma rala camada de areia no chão, deixada espalhada ali como resto de uma reforma residencial, cinco meninos brincavam divertidamente de bolinha de gude. Não resisti. Dei meia volta, parei na outra margem da rua e fiquei a contemplar a meninada, jogando gude, inadvertida e despreocupadamente, ignorando os carros e pequenos caminhões comerciais que por ali passavam, neutros, a tirar-lhes finos perigosos, ainda que em baixa velocidade por se tratar de um rua estreita e transversal à rua principal mais larga.

No alto da minha contemplação, voltei trinta anos no tempo. Voltei à idade dos meus filhos hoje, 11 anos. Tirei algumas fotos e passei a refletir sobre a situação daquelas crianças, preservando uma brincadeira antiga, o gude, em meio a uma selva de pedras, asfalto e cimento.

Há trinta anos, quando era moleque, adorava jogar gude, assim como soltar pipa, peão, descer a rua com carrinho de rodas de rolimã, bater uma ‘pelada’ com bola de capotão ou dente-de-leite,  jogar futebol de botão, queimada, garrafão e, claro, brincar de salada de frutas, que eu não era bobo e aproveitava pra arrancar uns beijinhos e uns abraços bem dados nas meninas da rua.

Enfim, mas todas essas e outras brincadeiras eram brincadas ao ar livre, em espaços abertos, campos de grama, barro ou areia, longe de carros, caminhões e gente apressada. E ninguém se preocupava em acabar logo a brincadeira pra voltar rápido pra casa e enfiar a cara em um computador ou videogame pra buscar diversão virtual ou ‘encontrar’ os amigos no Facebook, Orkut, salas de bate-papo ou no Second Life, My Life e outras bizarrices disfarçadas de suprassumos tecnológicos da modernidade.

Hoje, em nossa cidades, a infância está imprensada nos poucos espaços livres para lazer que gestores públicos descompromissados e irresponsáveis e construtoras gananciosas deixaram paras as nossas crianças. Dei um giro mental ao longo do local em que estava – na parte central do bairro Suíssa, e percebi que a razão para aqueles garotos estarem jogando ali, no cantinho da rua, presos entre a calçada e os carros, era porque não tinham pra onde ir. Todos os espaços de campos públicos foram tomados por casas e edifícios. A grande área verde e o maior espaço aberto ainda restante, a pouco mais de 100 metros de onde estavam, era cercada por altos muros e arames farpados, e ostentava placas ameaçadoras: ATENÇÃO! ÁREA DO EXÉRCITO. Quem ousaria entrar?

As praças mais próximas eram, na verdade, arremedos de praças, pequenas, malfeitas e incrustadas entre ruas movimentadas, geralmente com um barzinho ou banca de revista instalada, que diminuam ainda mais o espaço. Sem dúvida, os meninos não tinham mesmo onde brincar.

Vejo hoje meus filhos, por exemplo, na mesma situação. Moram em condomínio de apartamentos, onde as maiores áreas de escape para as suas diversões e traquinagens são uma piscina e um parquinho com chão de cimento e ardósia (caiu, lascou-se!). Não há uma quadra de esportes ou um espaço mais amplo de areia ou grama para brincarem, até porque os moradores optaram por ampliar ao máximo o número de vagas no estacionamento para seus segundos e até terceiros carros. Carros merecem mais espaços que gente. E é assim que a maioria das pessoas pensa.

Quando vemos nossos filhos viciados em computadores e televisão, apaixonados por brinquedos eletrônicos, celulares com MP3 e jogos, ou o último game da moda, tendemos a acreditar que é coisa desta geração, que é normal, que ficamos ultrapassados porque em nosso tempo era a pipa de papel, linha e bambu, feita por nós mesmos, que nos deixava felizes, ou o peão de madeira trabalhada, com um prego afixado na ponta e um barbante, e que nos bastava pra passar deliciosas tardes de disputas no chão duro e acrobacias com o bicho girando a mil por hora.

Não é verdade. Nem estamos ultrapassados, nem estes e outros brinquedos rústicos estão. Faça o teste. Eu já fiz. Certa vez, comprei uma pipa à moda antiga e fui soltar com meus filhos na praia; eles adoraram e se divertiram um bocado. Outro dia desencavei o meu velho ioiô – umas das raras coisas que guardei da infância, assim como alguns botões de mesa e alguns poucos  selos do Brasil e do mundo – do meio das minhas tranqueiras e arrisquei umas manobras (e até que me saí bem). Eles ficaram doidinhos da silva, encantados com aquele brinquedo simples, entremeado a um barbante, girando e girando, permitindo muitas manobras diferentes (punch, volta ao mundo, cachorrinho, pulando a cerca, Torre Eiffel...); nos divertimos pra valer.

Então, não subestimemos esses brinquedos ou a simplicidade de brincar com uma criança num espaço descente, soltando uma pipa, um peão ou batendo uma bolinha com ela. Tampouco ignoremos o fato de que estamos, na verdade, empurrando nossas crianças para a televisão, o videogame e a realidade virtual dos computadores, ora porque não arrumamos tempo pra curtir a vida com eles de forma simples e rústica , ora porque não cobramos efetivamente dos gestores de nossas cidades que repensem – e muito – o modo como estão rateando os nossos espaços urbanos, deixando quase sem áreas de lazer as nossas crianças, sufocando suas infâncias. As prioridades, como se sabe, são a especulação imobiliária e ruas, avenidas e estacionamentos para os automóveis. 


E os projetos de socialização, onde estão? Os projetos de resgate dos jogos e brincadeiras coletivas, colônias de férias, incentivos às práticas esportivas e oficinas de cultura popular, onde crianças possam fazer seus próprios brinquedos e com eles de divertirem? Em nada disso nossos gestores públicos pensam. Ganham suas eleições, mas se perdem nas mesmices de governos conservadores e insossos, que mais ajudam a embrutecer as pessoas que outra coisa.

E assim nossas crianças vão crescendo, em meio ao asfalto, ao cimento e aos carros, e tendo que se virar pra achar espaços onde minimamente possam exercitar o direito de serem o que realmente são: crianças. Começo a achar que tive muita sorte ao ter nascido há quatro décadas, quando dinheiro e modernidades não eram coisas tão importantes para um menino ou menina. Importante mesmo era ter espaço pra brincar, improvisar bastante nas brincadeiras, viver e ser feliz.




5 comentários:

  1. Com fui criado no interior, posso acrescentar: não existem lugares pra se pescar pescar com a família como antigamente (fiz muito isso com o meu pai) e os campos de peladas que não mais existem???? Andar de bicicleta se tornou mais perigoso que nunca, mesmo com as chamadas ciclovias (ninguém respeita) que na realidade são mal feitas e praticamente não tem manutenção!!!!!

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    1. Caro Antônio Carlos, tem toda razão, bem lembrado! Outra coisa maravilhosa que fazia muito na infância era pescar, algo que unia muito os amigos e a família em dias de muita alegria, paz e histórias pra contar depois. Isso se perdeu muito nos dias de hoje.

      Valeu pelo comentário.

      Abs.

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    2. Belo texto... George... uma infância saudável forma cidadãos melhores. É um passo importante na construção da cidadania. Taí um bom questionamento para os candidatos que aí estão?

      Abraço e parabéns pelas palavras.

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  2. Com certeza, caro Paulino! Obrigado e um forte abraço.

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  3. Companheiro George, bela leitura do resgate da nossa querida infância(tb passei por isso), que nenhuma outra, jamais terá o prazer de desfrutar(infelizmente, é o preço que pagamos, por conta da chamada modernidade).

    Aproveito, para desejar-lhe, desculpe o atraso, muita paz e saúde, pela passagem de mais um niver.

    Saudações CUTistas,

    Adailson
    Sindiprev/SE

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