O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, apesar dos grandes e importantes avanços nas políticas sociais e de transferência de renda, ainda, e lamentavelmente, se configura como um governo não só dos banqueiros, mas também dos ruralistas, dos militares, da Igreja Católica, dos donos da mídia e de tudo o que há de mais conservador e retrógrado neste país. É um governo que interessa às elites, porque ainda permite que elas sobrevivam com as presas cravadas em seu pescoço, a sugar o seu sangue. É governo dessa gente, menos do povo, que trabalha e luta por dias melhores. E isso é lastimável.
Fosse o governo Lula verdadeiramente do povo e para o povo, aproveitando o inabalável índice de popularidade que o presidente goza, não teria recuado e mudado a redação da terceira edição do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) para agradar a esses grupos que querem o Brasil e o povo brasileiro eternamente sob suas curtas rédeas.
O PNDH-3 é um programa resultado de dois anos de amplos debates com a sociedade, em dezenas de conferências por todo o país, onde participaram mais de 14 mil pessoas, de setores do governo, da sociedade civil e de movimentos sociais. Portanto, não é produto do governo Lula ou saído das entranhas de qualquer movimento político ou social, mas do debate entre os diversos setores da sociedade nas três esferas, que se interessaram em construir o documento. Se os ruralistas, os militares, a Igreja Católica e os barões da mídia não quiseram participar dessa construção, ou se participaram, não contribuíram como deveria, agora não tinham o direito de espernear depois que o documento, extraído do relatório final da Conferência Nacional de Direitos Humanos, virou Decreto presidencial e foi publicado, em dezembro do ano passado.
Mas espernearam, e atacaram ferozmente, o decreto e o governo, de todas as formas – principalmente usando a grande mídia que dominam e que sabem ser capaz de fabricar alienação em massa –, usando adjetivos que iam de autoritário a revanchista.
Esses setores que hoje comemoram o recuo do governo no PNDH-3 sempre se alimentaram da pobreza, da deseducação e da desinformação, e querem a todo custo manter seus privilégios históricos, sustentado-se na desigualdade social gritante, que ainda é a nódoa mais vergonhosa que carrega essa nação.
E o pior é que essa gente, que sempre viveu às custas de um Brasil ignorante, doente, alienado e à serviço do grande capital internacional, nunca estará satisfeita e continuará a pressionar e atacar o governo e os movimentos sociais que lutam pela causa dos direitos humanos até conseguir alcançar o seu objetivo mais sórdido, que é a descaracterização completa do Programa, até torná-lo ineficaz, letra morta.
E o pior é que Lula, um homem que um dia se fez na esquerda, e se fez de esquerda, cedeu lastimavelmente a essa gente, determinando, inclusive, que o ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi ouvisse as queixas desses setores descontentes e negociasse as mudanças necessárias para que o texto “passasse”, não importando sua eficácia.
E o que tanto incomodava essa gente raivosa e que precisava ser modificado? Em resumo, itens que mudavam, de forma pontual, mas significativa, a estrutura social vigente:
1. O decreto original falava em “apoiar a aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos”, e ganhou novo texto, onde se eliminou a possibilidade de descriminalização da prática abortiva; a nova redação diz apenas “considerar o aborto como tema de saúde pública, com a garantia do acesso aos serviços de saúde”. Ponto para a Igreja.
2. O decreto também modificava a proposta de institucionalizar a audiência pública nos processos de ocupação de áreas rurais e urbanas. A proposta era criticada pelo Ministério da Agricultura e pela Confederação de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) – carne e unha. Com a nova redação, a ideia de propor um projeto de lei sobre a mediação prévia entre latifundiário e ocupantes é mantida, mas “sem prejuízo de outros meios institucionais”, como a velha e conhecida reintegração de posse. Ponto para os ruralistas e grileiros do país.
3. Os donos dos meios de comunicação, célebres incentivadores de práticas que atentam contra os direitos humanos em seus veículos e que rendem bons pontos no Ibope, também foram atendidos pelo governo. O PNDH-3 não mais propõe a criação de lei prevendo “penalidades administrativas, suspensão da programação e cassação de concessão para os veículos que desrespeitarem os direitos humanos”. O novo texto apenas sugere “a criação de marco legal, nos termos do art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados”. Ponto para os tubarões da mídia.
4. Os militares, os primeiros que espernearam contra o Programa, também tiveram suas queixas atendidas na nova redação do PNDH-3. Foram modificadas a parte que tratava da produção de material didático-pedagógico sobre o regime de 1964-1985 e “a resistência popular à repressão”. A nova redação também não mais propõe “identificar e sinalizar locais públicos que serviram à repressão ditatorial”. No novo texto, tudo ficou mais genérico. Fica mantida a proposta de produção de material didático-pedagógico “sobre graves violações de direitos humanos”, ocorridas no período de 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988 (data da promulgação da Constituição Federal); e a identificação de locais públicos será feita em pontos onde tenham ocorrido “prática de violações de direitos humanos”. Palmas para os milicos!
E a Comissão Nacional da Verdade? Bom, os militares que serviram ao regime ditatorial podem dormir mais tranquilos. O PNDH-3 não levará a uma revisão da Lei de Anistia, tampouco possibilitará julgamento e punição daqueles envolvidos em crimes como tortura, estupro, morte e desaparecimento de opositores do regime. Lula, muito bonzinho com essa gente, decidiu que a criação da Comissão Nacional da Verdade, para esclarecer fatos ocorridos durante os Anos de Chumbo, será submetida ao Congresso Nacional e envolverá a apuração de violações cometidas também por militantes da esquerda armada. Ou seja, os torturados, perseguidos e violentados terão o mesmo tratamento que seus algozes. Nada mais trágico, num país de tantas tragédias.
Há que se lastimar e repudiar essa capitulação do governo federal frente à pressão desses setores conservadores da Igreja Católica, dos latifundiários – sempre sedentos por mais terras –, da meia dúzia de famílias que controlam a mídia nacional e dos setores antidemocráticos das forças armadas.
O Brasil, mais uma vez, desperdiça uma grande chance de propor uma mudança, mesmo que pequena, na sua estrutura social vergonhosamente desigual, concentradora, racista e sexista. Tudo para que se mantenham os privilégios seculares desses que sempre se valeram das promíscuas relações com o poder político, usufruindo dos recursos públicos como se fossem privados e pautando a agenda nacional para atender aos seus interesses mais mesquinhos.
O governo Lula poderia ser mais progressista e se configurar como verdadeiramente do povo, mas segue a secular rotina dos nossos governantes, de servir às elites sanguessugas e bajular os conservadores para atender às suas aspirações mais nefastas. E o povo que se lixe!
Nenhum comentário:
Postar um comentário